Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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Local: Belém, Pará, Brazil

quarta-feira, outubro 31, 2007

Dia da ira (V)

Semjaza achava belas todas as mulheres humanas, mas as consortes de Azazel eram mais ainda, pois ele lhes criara adornos e as ensinara a se enfeitar, e aos homens ensinara a fabricar instrumentos de guerra, assim instigando, algumas vezes propositalmente ou não, rivalidades e morticínios sobre a terra.
Mas nesse período Semjaza se encontrava frustrado e abalado demais para perceber esses acontecimentos, e por muito tempo ele ficou vagando em lugares ermos, evitando os seus companheiros angelicais e os humanos, alheio às obras desses e daqueles, e também às de seus próprios filhos, como dos filhos dos outros Vigilantes. Assim ele estava distante e sozinho com suas mágoas, enquanto cresciam os males do mundo e a humanidade travava longas guerras fratricidas.
Por outro lado, quem estava atento era o Demiurgo, o governante do Reino do Céu, e ele sabia que seu objetivo de controlar a humanidade poderia ser frustrado se os filhos dos anjos rebeldes se tornassem numerosos a ponto de os Vigilantes poderem rivalizar com ele. Assim ele disse ao arcanjo Miguel:
- Vai a Semjaza e anuncia seu crime, e a todos os que a ele se associam, que se uniram às mulheres e se corromperam de impureza, e abandonaram o estado perpétuo de santidade. Dize-lhes que serão testemunhas da destruição de seus filhos, em conseqüência de todos os seus atos de blasfêmia.
O arcanjo Miguel desceu à Terra com consentimento, em espírito, e ao finalmente encontrar Semjaza no deserto avisou-lhe que uma sentença pendia sobre ele e seus companheiros:
- Ele vos aprisionará. Não obtereis paz nem compaixão, pela tirania e opressão que ensinastes sobre a terra. Quando vossos filhos forem mortos, sereis amarrados por setenta gerações debaixo da terra, até o dia da ira e da consumação se completar. Naquele dia sereis precipitados na profundeza de fogo e atormentados para todo o sempre.
Semjaza escutou com apatia, e por fim respondeu:
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- Eu não ligo a mínima.
A mesma resposta que ao arcanjo Miguel, Semjaza deu várias eras depois a D. Rossini na sombria sala de interrogatório da Catedral da Santa Sé.
- Ainda não chegamos ao extremo- bufou o arcebispo.- Tenho paciência, ainda podemos prolongar seu sofrimento por semanas ininterruptas.
- Já fui ameaçado com o tormento eterno, e não me importei. Por que algumas semanas deveriam me assustar?- sussurrou Semjaza, acorrentado à parede com os braços abertos.
Azazel espetou-lhe mais algumas vezes o torso despido com a tenaz em brasa, e até ele parar de se debater D. Rossini ficou andando de um lado a outro entre os hediondos instrumentos da sala. Quando o demônio estava de volta em condições de dialogar, o arcebispo parou diante dele e olhou-o nos olhos opacos.
- Quer dizer algo?
- Eu já fui ameaçado com o fogo perpétuo, e isso é só uma tenaz- disse Semjaza.
D. Rossini golpeou-o a socos e chutes, agora sem nenhum espírito metódico ou sentido técnico, apenas com raiva comum. Ele já havia tentado várias formas de tormento e o demônio não demonstrava o desespero pressuposto, nem fazia menção de se render. Por fim o arcebispo enxugou o suor do rosto com a veste eclesiástica e procurou novamente os olhos de Semjaza.
- Você vê que eu sou um negociante, não um inquisidor- apelou D. Rossini.- Quero falar de negócios, portanto. Não sei por que você está desperdiçando com essa teimosia o tempo que poderíamos aproveitar acertando nossas cláusulas. Sabe, você não tem escapatória nenhuma. Sua missão para me matar era sigilosa, logo ninguém sabe que está aqui. A única maneira de você sair vivo e inteiro é aceitar as minhas disposições. Por que não pode fazer isso? Prefere ficar sofrendo, enquanto os danos se tornam cada vez mais irreparáveis?
- Apesar de na maioria das coisas você não ter nenhuma razão- suspirou Semjaza-, pelo menos tinha quando disse que as criaturas elevadas escolhem a satisfação do espírito, não do corpo. D. Rossini, meu espírito está melhor do que esteve em muitas eras, e lidar com essa felicidade é tão difícil que não consigo pensar em mais nada, nem na dor, nem em negócios. Mas não se incomodem, podem continuar, finjam que eu nem estou aqui.
D. Rossini xingou enfurecido, e Azazel sugeriu humildemente:
- Ele deve estar entorpecido, e só vai ficar cada vez mais, até a inconsciência. Não seria melhor pararmos até ele recuperar a lucidez?
- Com os diabos, não!- gritou D. Rossini.- Você é outro idiota! Continue, e progressivamente use meios mais drásticos até ele ceder, ou morrer!- Ele respirou fundo e enxugou outra vez o suor do semblante.- Vou para o meu quarto, avise-me quando conseguir um desses resultados.
O arcebispo foi embora em passos rápidos, e a sala passou alguns minutos em silêncio. Azazel passou vários minutos parado, segurando inocentemente a tenaz em brasa, e parecia mais mortificado que sua vítima. Semjaza levantou a cabeça com esforço, e tentou falar o mais próximo possível do anjo:
- Não sinta inveja. Em vez de invertermos nossas posições, eu escolheria nos resolvermos definitivamente. Sei como se sente, e deixo você decidir quando quiser.

sábado, outubro 27, 2007

Dia da ira (IV)

Semzaja não tinha tanta dificuldade em seduzir mesmo as mulheres que menos lhe interessavam, e procurava-as sem muito critério estético; achava todas belas por serem humanas e tinha preferência pelas que ele mais invejava de algum modo. Inveja sempre fora seu pecado predominante e seria seu tabu se ele achasse possível ignorá-la, mas não conseguindo vencer esse sentimento, usou-o como orientador.
Imaginava, pois, que ao seduzir uma mulher ele provava não ser inferior a ela em nada, e que ao fazê-la se entregar inoculava a inveja, pois tinha a idéia de que não fazia sentido continuar a invejá-las depois de tê-las possuído, assim perdia o interesse após a primeira e única vez e saía em busca de outra.
Eram poucas as que não se encantavam pelo anjo, mas a resistência dessas o abatia e o tornava mais agressivo com as que ele conseguia; até ele perceber que isso geralmente as deixava mais apaixonadas do que ele pretendia, e ele por sua vez ficava mais entediado e frustrado. Naquela altura ele tinha conquistado mais ou menos o mesmo que D. Giovanni na Alemanha, cerca de duzentas e trinta almas.
Justamente depois de escapar dos braços da sua ducentésima trigésima e dos beijos que ela ainda tentava lhe dar, Semjaza passou o dia perambulando e encontrou Azazel junto a outros anjos do bando, seus admiradores mais habituais. Os dois conversaram em particular sobre o que esperavam de sua descendência oriunda de violação da lei do Reino. A progênie dos Vigilantes poderia dominar a terra, e um dia também o céu. Então Semjaza perguntou quantas filhas dos homens Azazel havia conseguido para si, e a resposta por sua vez foi mais ou menos o mesmo que D. Giovanni na Espanha, cerca de mil.
- E quanto a você?- quis saber Azazel.- Algo perto disso, imagino.
- Talvez seja, eu perdi a conta- respondeu Semjaza amuado, e desta vez ele realmente desejava ter a força para ferir seu rival.
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D. Rossini sentou-se em sua cama e ligou o rádio, prosseguindo o réquiem de Verdi no Tuba mirum enquanto Azazel tentava subjugar o demônio. A resistência de Semjaza não durou muito, e no Judicanti responsura ele já estava no chão, com Azazel segurando-o pelos braços e pescoço.
- Espero ter deixado claro- disse D. Rossini depois de pausar a música outra vez- que podemos matá-lo se quisermos, Semjaza. Não tem medo do Juízo? Esse dia ainda chegará, você não pode escapar. Mas pode fazer como Azazel e aguardar em liberdade.
- Ele se considera livre, fazendo serviço para a Igreja?- perguntou Semjaza, e em resposta Azazel apertou lhe mais o pescoço.
- Responda com educação - censurou o arcebispo.
- Não, eu não estou livre- fez o anjo-, mas a vida que tenho aqui não é pior que a no cativeiro. Eu prefiro como estou agora.
- Imaginei que alguém com o seu orgulho negaria esse serviço como condição e continuaria lá mesmo- insistiu Semjaza.
Azazel não respondeu, mas sim D. Rossini:
- O orgulho foi dissipado pelo longo tempo de tortura na punição, entenda. Azazel não suportou os tormentos físicos que lhe infligiam no cativeiro e prefere os tormentos morais de estar a meu serviço, é simples. Só os seres superiores resistem a qualquer provação imposta a sua matéria e escolhem sempre a sublime satisfação apenas do espírito, jamais do corpo. Vocês anjos deviam entender isso mais do que ninguém.
O anjo não se alterou, mas Semjaza pôde deduzir a vergonha que seu antigo rival sentia naquele momento, e disse:
- Se é assim, parece que eu não o conhecia bem, e tive durante muito tempo uma falsa idéia positiva dele. Estou muito decepcionado, D. Rossini, suas palavras me desiludiram sumamente.
- Mas você verá agora que não pode culpá-lo - disse o arcebispo, levantando-se.- Azazel, leve-o para a sala de interrogatório. Você resistiu durante um tempo considerável, mas ele ainda hoje fará a mesma escolha que você, eu garanto.

terça-feira, outubro 23, 2007

Dia da ira (III)

- Carne e osso, quer dizer?- perguntou Semjaza ansioso.
- É claro- disse Azazel com evidente desprezo por sua forma etérea e luminosa de anjo.- Sem dúvida é possível. Se conseguimos ver a Terra, e eventualmente descer até lá em espírito, e até conseguir contato remoto com os seres humanos, e eles conseguem chegar até aqui em espírito, podemos chegar lá em carne e osso.
- É uma idéia perigosa- avisou Semjaza. Ele de vez em quando olhava ao redor para ter certeza de que a conversa não tinha espectadores inesperados.
- Se ela der certo, não teremos nada a temer- comentou Azazel.- Ninguém poderá nos alcançar na terra. Seremos livres do Demiurgo.
- Sua ambição está indo mais longe. Eu acho melhor esquecermos esse projeto.
- Não seja covarde- reclamou Azazel.
Ele empurrou o companheiro até os feixes de luz onde podiam observar a Terra.
- Veja a progênie dos homens- continuou ele-, e como são belas suas filhas. Gosta de alguma, ou de várias? Como se sente por não poder alcançá-las?
Semjaza não respondeu, e se afastou da visão com raiva.
- Por que anjos?- disse mais tarde.- Devíamos ter sido homens.
- Inveja é pecado- falou Azazel, como instigação e não censura.- E isso pode ser resolvido. Podemos deixar de sentir inveja dos homens se os conhecermos mais de perto, é tudo muito diferente de olhar daqui. Podemos ser melhores que eles, se assumirmos forma corpórea naquele mundo.
- É verdade- disse Semjaza esperançoso.- Os pecados mais graves cometeríamos se tivéssemos sucesso. E não suporto mais, meu desejo é mais intenso que o medo das conseqüências. Que faremos?
- Eu cuido disso. Conheço muitos que odeiam o Demiurgo, e farei com que se aliem a nós nessa ambição, quase duas centenas eu garanto que me seguirão. Mas se quisermos organizar um movimento, você deve ser o líder, porque é de hierarquia mais elevada que a minha.
- Apesar disso, acho que você deve liderar- fez Semjaza como admitindo algo que não queria.
- Não se sinta inseguro- disse Azazel.- Siga as minhas instruções e será um bom líder para o movimento. Além disso, você está mais apaixonado que eu pelas filhas dos homens, isso lhe dará mais coragem, e facilitará que nos tornemos como homens.
- Como fazer isso?
- Se todos nós dirigirmos nossas vontades e nossa intenção de coabitar com os humanos, faremos um juramento em nome dessa violação, e teremos natureza de matéria, pois nossos sentimentos são dessa natureza.
Semjaza concordou, e em pouco tempo duas centenas de anjos aderiram à causa através de Azazel. No topo do monte Armon, uniram-se a Semzaja por juramento, e desceram à terra, alados e luminosos, mas com aparência e sentimentos humanos.
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- Ele nunca saiu da linha que eu tracei- disse Azazel, postado entre o demônio caído e D. Rossini.- Apesar de ele ser o líder do movimento, não consegui esconder dos inimigos que era eu quem dava as ordens, assim ele não fui punido com mais rigor do que eu.
Semjaza levantou-se e tentou encarar seu antigo companheiro, mas baixou os olhos pouco em seguida, não só por estar intimidado, mas para procurar a espada também. Ela estava em um canto mais distante.
- Já é o suficiente para aceitar os meus termos, Semjaza?- perguntou D. Rossini.- Ou Azazel precisa lhe trazer mais lembranças inconvenientes?
- O que fazem juntos?- perguntou Semjaza com alguma timidez.
- Ele já me contou tudo, sobre como vocês fizeram juramento execrável, seduziram mulheres e copularam com elas, e ensinaram sortilégios às pessoas, provocaram rivalidade e genocídio, infestaram a terra de pecado e todo tipo de malefício. Azazel está a meu serviço como pagamento por seus crimes, foi essa a condição para o Demiurgo libertá-lo de seu cativeiro. Mas podemos explicar tudo mais tarde, depois que estivermos resolvido, aí vocês colocam suas fofocas em dia. O que me diz?
Semjaza fitou D. Rossini em vez da figura daquele anjo que ainda lhe parecia extremamente imponente, mais do que sua própria forma de demônio.
- Ainda não me convenceu de que devo me render- blefou ele.- Já falei que não tenho mais vínculo com minha forma anterior. Azazel também não é o mesmo de antes, se aceitou esta liberdade condicional servil.
- Por via das dúvidas, mostre a ele os nossos motivos- suspirou o arcebispo para o anjo, e Azazel saltou sobre o entorpecido Semjaza antes de a ordem terminar de ser dada.

domingo, outubro 21, 2007

Dia da ira (II)

Semjaza avançou um passo.
- Isso não me importa. Sou inteiramente demônio, e a vida que tive quando era anjo perdeu o vínculo com o meu eu atual. Pode publicar o que quiser, será a biografia de um anjo caído que não existe mais, ele não poderá se ofender nem ser afetado de qualquer modo por essa tolice. Talvez você tenha faltado a aula de teologia em que ensinaram esse detalhe natural. Quanto ao seu quarto de hora, creio que já terminou. Adeus, D. Rossini.
- Verá que não pode me ferir- disse depressa o arcebispo.- Se não acredita em mim, ou acredita e realmente não se importa, talvez comece a se preocupar quando souber qual é a minha fonte. Ainda temos o que conversar, e há mais coisa que preciso lhe dizer.
-Estou esperando- disse o demônio em guarda.
- Eu me precavi contra a sua teimosia, e tenho um guarda-costas que você não conseguiu burlar nem eliminar. Ele está aqui, portanto não faça nada precipitado. Quero conversar mais um pouco, e no final você estará convencido de que eu venci. Você é esperto, mas, receio dizer, não é sagaz, e se mete onde não tem capacidade para estar: na liderança dos anjos rebeldes, na cúpula da organização de Josef Sikes, enfim. Acredito que todo ser tem o dom da evolução, e me pergunto se você, agora que é demônio, evoluiu em algo. Parece-me, desculpe a sinceridade, a mesma coisa de antes.
- Sempre blefando, D. Rossini- sussurrou Semjaza-, e apelando cada vez mais para besteiras. Para começar, eu teria percebido a presença de um guarda-costas por mais escondido que ele estivesse. Sem dúvida você não entende a percepção dos demônios. E depois, se eu cheguei a essas posições, possuo algum mérito, ou não teria permanecido nelas nem um dia. Não importa. Você não pode me provocar com esses fantasmas antigos, eu já superei a maioria, e os que ainda não superei estão fora do seu alcance para usá-los contra mim.
- Se é assim, por que está se justificando, em vez de me matar imediatamente?
- Porque estou entediado, talvez.
- Entendo. Será que está farto de ser um demônio, ou não se adaptou? Gostava de como tudo era antes, apesar de suas crises? Sente-se nostálgico de algo que odiava? Se agora tem poder e grandeza, quer sentir carência e inveja outra vez? Pode dizer, sinta-se no confessionário. Quero olhar em sua alma para curá-la. Será mais proveitoso para mim um adversário forte, e não um miserável. Um grande demônio, não um cãozinho, o que você ainda não deixou de ser.
Semjaza atirou-se contra o homem, mas antes de golpear D. Rossini com a espada ele próprio sentiu um golpe que o lançou à parede e fez a arma escapar de suas mãos.
- Eu avisei que a mentira não é um dos meus vícios- disse irritado o arcebispo, e a seu lado um anjo luminoso encarava o caído Semjaza.- Mas você já conhece o meu guarda-costas, é claro. Ele reconheceu você mesmo em forma de demônio e depois de tanto tempo. Faça o favor, Azazel, não deixe este demônio sair da linha outra vez, espero vê-lo manso como antigamente.

sábado, outubro 20, 2007

Dia da ira (I)

Continuação do "Oferta irrecusável", e tudo.
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O réquiem de Giuseppe Verdi fazia os vidros do quarto vibrarem em ressonância com o inquietante Dies irae, mas o homem deitado na cama, em trajes eclesiásticos, parecia muito relaxado, mãos cruzadas como um defunto, olhando o teto da ampla câmara, esperando um visitante. De vez em quando olhava na direção da grande janela em busca de alguma figura voadora passando.
Antes de chegar, porém, no Mors stupebit, ele se levantou e desligou o rádio. O silêncio absoluto durou até a porta se abrir e a figura demoníaca segurando uma espada entrar na câmara mal iluminada do arcebispo.
- Bem vindo à Catedral da Santa Sé- disse o homem.- Mas não se apresse em me matar, Semjaza. Eu o aguardei o dia todo, garanti que a catedral ficasse vazia, e pensei muito sobre como poderíamos chegar a um acordo, portanto você deve me escutar. Pode me dar algum tempo antes de cumprir a sua missão?
- Um quarto de hora, D. Rossini- respondeu o demônio fechando a porta atrás de si.
- Deve bastar. Então, o velho Sikes continua irritado comigo por eu haver tentado matá-lo? Não sei por que tanto ressentimento, ele perdoou muitos dos que tentaram mandá-lo para S. Pedro desde que ele era menor de idade. E veja bem, o meu caso foi puramente uma questão de negócio, afinal somos concorrentes, mas podemos chegar a uma resolução financeira, sem ressentimento nenhum. E é graças a minha, por assim dizer, intervenção-- talvez por uma Providência--, que você conseguiu fazer com ele o notável contrato, e ficou em tão boa forma. Não pode mostrar um pouco de gratidão?
- Não sei- disse Semjaza.- Para agradecer, eu lhe daria tempo para se reconciliar com o seu odioso deus e renunciar a seus incontáveis pecados, mas um quarto de hora não seria tempo suficiente, e eu não quero passar o resto da eternidade aqui até você terminar. Penso que não tem necessidade, mesmo.
- E o que pretende fazer depois de me matar? Procurar uma mulher, para lembrar os dias de antigamente?
- É uma boa idéia até, mas não faço questão de lembrar nada. E se você falar nesse assunto outra vez, vou adiantar os minutos que faltam.
- Eu conheço o seu passado- prosseguiu D. Rossini-, e de fontes mais confiáveis que textos apócrifos ou teorias inúteis de teólogos ociosos. Para falar a verdade, sei tanto sobre você que poderia escrever um imenso volume a respeito. Aliás, eu já fiz muitos rascunhos, alguns bastante compridos, e os incluí no meu espólio. Sabia que estou doente?- O demônio não respondeu, então o arcebispo retomou:- O importante é que, se eu morrer, alguns documentos muito interessantes, cheios de curiosidades, vão ser publicados sobre você em um ensaio póstumo. Eu os tenho escrito nesses últimos meses, enquanto você e Sikes me procuravam pelo mundo todo. Ele não pode ter pensado que eu não faria nenhum movimento...
- Está blefando- disse Semjaza com frieza.
- Um de nós está, e se me matar descobrirá qual. Se não me matar, ainda penso em fazer-lhe chantagem, talvez também a Sikes, se conseguir material suficiente. Vamos, você não é um mero botão daquele bandido, você também tem espírito negocial, então em vez de se irar comigo pense nas possibilidades. Você rejeita seu passado e não suportará se eu o desenterrar. Se você tiver uma crise moral, que poderá acontecer? Isso influenciaria em seu contrato? Caso sim, eu posso fazer Sikes aceitar os meus termos. Mentir não é um dos meus vícios, é claro, e quero que sejamos inteiramente francos um com o outro. Por que não me conta o que está pensando neste exato momento? Sem termos chulos, de preferência.
- O que quer, exatamente?- perguntou Semjaza com voz indefinível.
- Primeiro, tirar satisfação por você e seu sócio terem pensado que sou estúpido; e depois, aproveitar ao máximo a extorsão que vou fazer. Meus objetivos são simples, mas vai ser muito divertido. Vamos procurar o Sikes e falar com ele a respeito?

quinta-feira, outubro 18, 2007

Oferta Irrecusável (III)

- Posso lhes oferecer muita coisa- repetiu Semjaza, e quase não era mais luminoso.- Até valores mais altos. O que desejarem pode ser objeto do nosso contrato. Josef Sikes, qual é o seu valor mais alto?
Aquela pergunta por si só paralisou Sikes na cadeira. Ele ficou quase um minuto em silêncio, e durante esse tempo nem Vinçart nem o anjo fizeram nada. A demora era muito natural, e por fim a resposta foi uma pergunta:
- O que quer dizer com isso?
- Refiro-me ao sentido da sua vida- tornou o anjo.- Posso oferecer a realização dele. Qualquer coisa que você tenha buscado durante toda a sua existência, eu posso conceder, ou ajudar a encontrar.
- É impossível- disse Sikes brandamente.- Não há nada que você possa me oferecer. Eu rejeito o contrato.
A luz de Semjaza aumentou um pouco, mas nenhum dos homens notou. Vinçart levantou-se do sofá com um salto.
- Você pode ter entendido mal, sr. Sikes- disse ele.- Este anjo está usando um termo técnico de pactos demoníacos. Lembra-se da teoria da ética material de valores de Max Scheler? É algo semelhante, pelo menos em realização de valor.
- Não estou muito bem lembrado- resmungou Sikes.
- Toda ação humana tem em vista a realização de um valor- explicou Vinçart-, e todo valor engrandece o ser humano, confere-lhe dignidade e lhe possibilita achar um caminho para a felicidade. Para toda conduta existe um valor a alcançar. O que dá um sentido à vida humana é valor, e os demônios conhecem todos muito bem, por isso seus pactos têm conteúdo axiológico sempre, é isso que eles exploram. Todos os objetivos que uma pessoa pode definir para sua vida são vinculados a um valor que ela quer realizar. O desejo causa sofrimento, e a realização do valor é a solução. É para isso que vivemos, para essas grandes esperanças, caso contrário não suportaríamos um só dia na terra.
- Entendo. E por acaso qual é o seu valor, sr. Vinçart?
- É a economia. Afinal, eu não tenho religião, portanto não reconheço um valor sacro que me leve a viver pela salvação da alma. Não tenho preferência política alguma, logo não é ideologia o meu valor. Não tenho interesse estético, então a beleza não me é referencial para nada. Não me preocupo com as pessoas em particular ou com a sociedade como um todo, daí não ser o bem comum o meu valor. Nem a minha própria pessoa eu vejo sentido em aprimorar, pois a virtude não é a minha finalidade. O meu sentido, sr. Sikes, é o dinheiro, e apenas o dinheiro. Não tenho perspectiva de direcionar minha existência para outro objetivo senão acumular dinheiro. Todos os outros valores são inócuos em um mundo perverso. Somente o dinheiro é um valor real e eficaz, e uma realização plena.
- O poder é o maior valor- interpôs Semjaza; seu aspecto era de sombra.
- Você está equivocado- disse Vinçart.- Todos os valores são inerentes ao poder, é para isso que eles servem. O poder não é um valor, ele é o próprio valor em si, o valor absoluto. Adquire-se poder através dos valores, um dos quais o dinheiro. Mas um líder espiritual tem poder, um chefe de Estado tem poder, um grande artista tem poder, eu e Sikes temos poder. Qualquer patife a que outras pessoas se sujeitem de bom grado tem poder.
- Entendo- disse Semjaza em voz baixa.- Qualquer um que seja admirado ou seguido tem poder, disso eu sei muito bem, obrigado. Vontade de potência... há muito tempo não penso nesse assunto, mas não posso fazer um pacto sem considerá-lo, é claro. Se fizéssemos o contrato eu poderia lhe dar dinheiro perpétuo, Vinçart. Todo o dinheiro do mundo.
- E assim eu ficaria fora de mercado. Valores estritamente materiais têm essas problemáticas limitações. Não, obrigado, não quero fazer contrato nenhum. Onde estavam? Ah, sim. Supondo que o valor mais alto do sr. Sikes também seja o dinheiro, e considerando que ele já tem muito, talvez ele não queira fazer esse contrato afinal de contas.
Mas Sikes destroçou com um golpe todas as torres de dinheiro sobre a escrivaninha.
- É claro que não é esse o meu valor!- falou de repente, levantando-se.- O dinheiro não passa de um meio. Eu vejo sentido em experiências mais sublimes.
- Sim? Muito interessante. Acho espantoso nunca termos conversado a respeito, depois de tantos anos como sócios. Pensei que tivéssemos o mesmo objetivo, o lucro. Mas então, corrija-me.
- O meu objetivo, sr. Vinçart, é a vida eterna!
- Ora essa- disse Vinçart apenas, sem achar mais palavras.
- Então não há de recusar a minha proposta- fez Semjaza em continente triunfo.- Não posso, ainda, lhe dar a vida eterna, mas posso prolongar sua existência por muitas gerações, e ainda prestar toda a minha habilidade e sabedoria, ajudando-o de todas as formas possíveis na busca pela imortalidade.
- E a minha prestação?- perguntou Sikes.
- Tudo que eu peço em troca- respondeu o anjo- é ser o seu sócio. E também efetivarmos juntos o projeto de atacar e conquistar o Reino do Céu.
Sikes silenciou.
- Parece muito razoável. Não há por que recusar - avaliou Vinçart secamente.
- Mas eu vou.
Sikes sentou-se e cruzou os braços.
- O quê?- gritou Semjaza.
- Ora essa- manifestou Vinçart.
Parecendo contente, Sikes levantou-se e vestiu um casaco.
- Estou com muita fome- declarou.- Vou jantar no Don Vito hoje. Quer me acompanhar, sr. Vinçart? Por minha conta.
- É claro.
- A música ao vivo lá sempre é muito boa. Gosta de música, anjo?
- Por que recusou o contrato?- perguntou Semjaza. Estava abatido, mas sua forma outra vez pendia para angelical.
- É difícil explicar- disse Sikes, colocando seu chapéu.- Para realizar meus valores, gosto de independência, quanto mais melhor. E depois, violaria um princípio meu. Sei que um pacto demoníaco é mais que um acordo de vontades, gera não só obrigação, mas proximidade espiritual também. Não posso ceder a esse luxo. Seríamos dependentes demais um do outro, e isso só atrapalharia a minha vida. Vivo perigosamente, quem está comigo não está seguro, e eu detestaria precisar ficar me preocupando com o meu contratante, mesmo que ele fosse um poderoso demônio. Seria como colocar minha família no lugar dos meus guarda-costas. Não, melhor deixá-los longe; todos, inclusive eu, ficam mais seguros assim. Não se ofenda, anjo, não é que eu o esteja mandando pentear macaco, o problema é administrativo. Mas, não obstante, quando você se tornar demônio, posso empregá-lo como botão. Que acha?
Semjaza alargou as asas luminosas.
- Se perdi essa oportunidade, Josef Sikes- disse ele-, não terei outra, e continuarei como anjo. Jamais conseguirei fazer uma oferta tão irrecusável quanto essa à pessoa certa. Creio que isso define a minha natureza, quer eu goste ou não. Talvez eu goste. Não tenho certeza do que eu desejo. Diferente dos humanos e dos demônios, os anjos não entendem bem as questões de valor.
- Mas um anjo caído sim, acredito- interveio Vinçart.- Então, vem jantar conosco?
- Não. Nossa negociação está encerrada, então não precisamos nos ver novamente. Portanto, adeus.
Ele saltou por cima da escrivaninha e desapareceu pela janela, deixando a sala como originalmente. Pareceu aos dois homens que ali nunca fora tão escuro.
- Acho que dispensou uma excelente oferta, sr. Sikes.
- Não. Mas dispensei um excelente capanga, sr. Vinçart.
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Minutos depois, os dois desciam as escadarias saindo do grande prédio do escritório de advocacia. O pouco movimento da rua fazia Sikes, Vinçart e os três guarda-costas parecerem um grupo chamativo. Outra coisa que não passava despercebida era um homem tentando arrombar o Rolls Royce estacionado na calçada.
- Meu carro! Peguem aquele pilantra- ordenou Sikes.
Os guarda-costas correram degraus abaixo. Vinçart foi o primeiro a perceber o truque e gritou, puxando Sikes de volta escadaria acima:
- Atenção, é armadilha!
Imediatamente outros três homens saíram ao mesmo tempo de lojas diferentes do perímetro. Um quarto no bar defronte sacou uma arma de dentro do cardápio. O tiroteio foi muito rápido, e poucos segundos depois os atacantes se dispersaram e desapareceram nas esquinas, pois tinham conseguido o que queriam. Sikes estava caído na escadaria, e algumas cachoeiras de sangue desciam os degraus. Praguejando, Vinçart deu instruções aos guarda-costas, e em meio às próprias imprecações escutou a voz apagada de Sikes:
- Chame ajuda.
- Já providenciei. Trarão uma ambulância.
- Não há tempo. Chame o anjo.
Vinçart não conseguia se lembrar da última vez em que ele ficara realmente perplexo, mas naquele momento ficou, mais do que quando o sócio recusara a oferta irrecusável, e sem saber o que fazer, gritou para qualquer parte o nome de Semjaza, ignorando a falta de lógica que era percebida por todos na rua.
O anjo apareceu como se não tivesse se afastado, e pousou nos degraus junto ao advogado e o gângster mortalmente ferido, mas não chamava a atenção; não tinha nenhuma luz.
- Esses problemas administrativos complicam muito a vida- disse Semjaza-, mas para a morte não se leva nem as complicações. Parece que agora o problema é bem mais aceitável que a solução, não é, Josef Sikes?
- Desgraçado, me ajude de uma vez. Não pode me dar vida eterna, mas pode me dar um pouco mais de vida. É alguma coisa, por enquanto. Vamos consentir logo aquele contrato. Se quiser que eu assine com sangue, pegue um pouco aí da poça e estamos combinados.
- Dada a urgência, prefiro dispensar a burocracia e o momento solene. Seja nossa testemunha, sr. Vinçart.
Vinçart não entendia o procedimento de pactos de alma. Sempre tivera dificuldades com procedimentos em toda a sua carreira jurídica. Instantes depois, Sikes levantou-se irritado e ajeitou o casaco, ignorando os furos e o sangue no tecido. Semjaza desceu os degraus em sua opulenta forma demoníaca.
- É, agora precisamos nos entender de um modo ou de outro- resmungou Sikes.- Sabe que temos muito trabalho pela frente, e eu não deixo meus sócios em paz quando há assuntos pendentes. Vou lhe explicar como a minha organização funciona, e quero resolver logo a divisão dos lucros. Podemos discutir isso no restaurante. Por falar em dinheiro, onde estão os guarda-costas? O conserto do meu casaco vai ser descontado do salário deles.
Sikes foi procurar os seguranças, deixando Vinçart e o demônio Semjaza sozinhos por um instante ao pé da escadaria, na rua deserta.
- Você não tinha ido embora, não é?- perguntou o advogado.- Estava observando o tempo todo?
- Certamente- respondeu Semjaza.
- E tinha visto aqueles homens, sem dúvida. Sabia que Sikes estava para sofrer um atentado, e não ajudou, nem avisou. Esperava assim conseguir o contrato para se tornar demônio?
- Acredito que eu me tornaria mesmo que Sikes não ficasse ferido. A atitude talvez fosse o suficiente.
- Sim, é uma desonestidade que impressiona até a mim- disse Vinçart com algo que poderia ser orgulho de sócio.- Muito curiosa para um anjo, mesmo um caído.
- Eu fui anjo apenas por um engano do Desígnio. Hoje pude experimentar a minha natureza finalmente, caso contrário não teria conseguido fazer o contrato me aproveitando da situação. Não tenho mais dúvidas quanto a isso. Resta procurar o meu valor mais alto.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Oferta Irrecusável (II)

- Estou escutando- respondeu Sikes secamente.
- Essa foi a proposta- disse Semjaza.- Desculpe-me se não fui claro. Vim como proponente de um contrato. Quero fazer um pacto.
- Um pacto de alma?- reclamou Sikes, e fez desmoronar com um safanão algumas torres de dinheiro para poder debruçar-se sobre a escrivaninha.- Está de brincadeira comigo? É ridículo, e além disso não há nada mais absurdo que fazer um pacto desses com um anjo!
- Anjos nem deveriam ter capacidade jurídica- opinou Vinçart.- Não há benefício que venha disso, nem para eles nem para nós. Nesse tipo de contrato, os anjos são inadimplentes natos. Não há pressupostos de validade.
- Deixe-me explicar- fez Semjaza como cansado ou arrependido.- Vocês sabem que não sou um anjo íntegro. É possível que em breve eu me torne um demônio. Talvez, se eu fizer um contrato, esse seja o ato final, e como demônio poderei cumpri-lo. Eu disse que queria definir a minha natureza, e tenho ficado cada vez mais convicto de que ela é demoníaca. Vim à existência como anjo por um erro do Desígnio. Posso ser útil para vocês quando adquirir minha verdadeira identidade. Terei novas habilidades...
- Mas até lá, não temos nada a tratar- interferiu Sikes bruscamente.- Dê meia volta, vá passear nas nuvens e volte quando tiver um rabo pontudo. Ainda assim será mera possibilidade. Você não parece ser nada de especial, e já tenho demônios trabalhando na organização, todos muito eficientes.
- E todos ordinários também, certamente- argumentou Semjaza com mais firmeza.- Não será o meu caso. Quando eu for um demônio, não serei dos pequenos.
- Interessante- disse Vinçart.- Já ouvi falar na hierarquia-- não oficial, mas eminentemente moral--, que os demônios têm entre si, e também em relação a nós humanos, embora não saibamos disso, ou não entendamos bem.
- Os demônios só vêem sentido no mundo de acordo com a beleza- explicou Semjaza-, e nada acham mais belo que o poder. Para eles, toda e qualquer qualidade de um ser é relacionada à capacidade de dominação. Eles se submetem de boa vontade aos mais fortes que os ajudem a dominar os mais fracos que eles próprios. Eu fazia isso até como anjo, mas se me tornar demônio, precisarei de poder, e se me aliar a um homem influente conseguirei muitas fontes. Eles fazem pactos de vassalagem nesse sentido; e humanos fazem com eles em troca das mais variadas dádivas. Negociando-se a alma, negocia-se a vontade e os sentimentos. Um demônio poderoso pode oferecer fortunas a um homem, mas para os demônios a fortuna maior não é material. O contrário também acontece. Fausto poderia ter negociado a alma de Mefistófeles, se tivesse mais a oferecer. Sendo demônio, poderei recompensar devidamente um homem na sua posição, Josef Sikes, por isso vim procurá-lo. Porque até ser um Mefistófeles, e não um Fausto, precisarei de um patrono.
- Por que não procurou o chanceler?- disse Sikes com desprezo.
- O chanceler já tem um demônio contratante à altura.
- Então você se considera à minha altura? Esse foi o pior insulto que me dirigiram em muitos anos! Vocês anjos são ralé.
- Quando eu determinar minha natureza, poderei me considerar à altura de qualquer humano, mas para isso preciso de ajuda. Não exigirei muita coisa, pois a maior parte de minhas necessidades posso eu mesmo suprir. Quero me diferenciar dos demônios ordinários, e em troca posso oferecer muitas coisas valiosas a um homem de negócios.
Sikes trocou um breve olhar com Vinçart, como se parlamentassem telepaticamente, e voltou-se ao anjo:
- Muito bem. Pode dizer os termos do contrato, eu pelo menos vou escutar.

sábado, outubro 13, 2007

Oferta Irrecusável (I)

Sikes jogou fora o charuto pela janela e tombou na cadeira confortável por trás da escrivaninha de mogno. O advogado, Vinçart, permanecia sentado no sofá perpendicular à mesa, tirando dinheiro de uma vasta maleta para contá-lo e passar a Sikes em maços mais espessos que os códigos e livros jurídicos que preenchiam a estante próxima à porta do escritório.
- Pelos meus cálculos, já alcançamos a soma suficiente para o financiamento do projeto final- comentou Vinçart casualmente ao lançar no ar um maço de notas na direção do sócio.- Podemos dispensar o resto dos clientes.
- Sim, faça isso- disse Sikes, contemplando o dinheiro que formava grandes colunas sobre a escrivaninha, e Vinçart saiu do escritório.
Sikes levantou-se e ficou rodando ansioso pela sala. Conseguir todo o dinheiro necessário para o seu mais ambicioso projeto deixara-o angustiado e desnorteado. Ele era sumamente rico, mas suas empreitadas de praxe também eram invulgarmente custosas. Várias se tratavam de mega-operações criminosas convencionais, que geravam lucro para alimentar outras duas ou três investidas, expandindo suas conquistas de territórios do submundo; porém as mais secretas possuíam custo e significado muito mais elevados, extraordinários, e não gerariam um só centavo em retorno.
Ele estava a refletir sobre isso quando Vinçart entrou de volta no escritório dizendo:
- Mandei todos os clientes embora, mas há um sujeito que insiste em lhe falar. Parece que driblou os seguranças e fingiu ser cliente, mas está limpo.
Sikes soprou a fumaça do charuto.
- É mesmo? Que tipo de homem é esse que invade a firma e insiste em falar comigo? Há muito tempo não vejo um parecido; parece que ficaram mais raros, talvez por eu ter matado vários. Então?
- É um anjo. Diz que se chama Semjaza, e que quer trabalhar aqui.
- Bem, diga que não empregamos anjos, por razões óbvias; e pela insolência mande-o para ter uma conversa com S. Pedro no céu.
- Na verdade- acrescentou Vinçart-, ele não é um anjo completo. Está em fase de transição. A qualquer momento, se instigado, pode se converter em demônio, e aí sim terá utilidade para nós. Creio que podemos considerá-lo.
- Está bem, vamos avaliá-lo- sentenciou Sikes, atirando o charuto pela janela.- Chame-o.

Segundos depois, Vinçart entrou novamente na sala com a figura luminosa. Sentou-se no sofá e o anjo ficou de pé diante da escrivaninha, encarando o notório gângster.
- Menos luz- resmungou Sikes por trás das torres de dinheiro.
O anjo assumiu feição quase humana. As asas pareciam não muito mais do que fumaça em uma leve cortina luminosa.
- Pois bem- continuou o chefão do crime-, quer trabalhar na minha organização? Estou insultado por você ter pensado que eu o consideraria sem mais nem menos, só porque conseguiu entrar aqui. Tem o aspecto de quem acaba de tomar uma surra. Por que acha que eu o empregaria? Desembuche, sei que gente do seu tipo não viria falar comigo sem uma oferta. O que tem para mim?
- Primeiro, minhas saudações, Josef Sikes, e depois minhas habilidades. Quero trabalhar aqui- disse o anjo em tom humilde, mas inflexível.
- De que grau na hierarquia você é?
- Eu era da nona ordem, querubim- respondeu o anjo com indiferença-, mas hoje sou o que chamam de anjo decaído.
- Não me lembro de nenhum querubim chamado Semjaza. Aliás, nunca ouvi esse nome na minha vida. Sr. Vinçart, este sujeito consta em nossos arquivos?
- É certo que não, mas ele consta em um documento apócrifo de estudo das ordens. É um dos Vigilantes, se não estou enganado. Isso procede, anjo?
- Não sei. Em breve talvez eu assuma definitivamente a natureza demoníaca, mas espero oferecer meus serviços antes disso.
- Com que intenção?- questionou Sikes.
- Definir a minha natureza- disse o anjo simplesmente.- Podemos nos ajudar um ao outro nessa matéria, Josef Sikes. Eu tenho uma proposta.

segunda-feira, outubro 08, 2007

A Dedicatória

- Por que não escreve uma grande obra de teologia, monsenhor Pharoux?- disse-lhe certa vez o vigário, um homenzinho careca e bem mais velho, naquele tempo já sem grandes pretensões religiosas e que, conseqüentemente, as depositava nos outros mais novos.- Suas idéias têm notável substância, então por que não as sintetiza no que pode vir a ser um trabalho primoroso?
Monsenhor Pharoux encontrou ali uma grande oportunidade. Pouco tempo antes ele havia ganhado o título honorífico de monsenhor, e havia muito escrevia ensaios teológicos, alguns apenas esboçados e outros muito extensos, menos por dedicação do que pela necessidade de expressar suas idéias a folhas em branco, pois lhe faltavam amigos bons ouvintes; e em especial porque, ao contrário de afetuosos confidentes, algumas páginas bem escondidas não poderiam denunciar seus eventuais deslizes heréticos e tendências políticas à censura. Apesar de ser eclesiástico, ele odiava a sensação de ser censurado e reprimido, por isso muito frustrante seria iniciar um projeto e tê-lo fiscalizado antes de consolidar suas idéias mais sensacionalistas, comprometendo assim o retorno financeiro.
Pois bem, ele prontamente partiu para a compilação e adaptação de seus manuscritos, e não tardou a lhes atribuir o título geral de O Reino de Deus. Regnum Dei para os mais conservadores. Ali depositou longas análises sobre vários teóricos cristãos ou não, discursou contra os maniqueus, a favor de Heráclito e cuidadosamente neutro em relação a Deus-- e mais ainda aos políticos locais. Escreveu até sobre a hierarquia dos anjos e a disposição dos astros em hora de nascimento das pessoas, com tratamento muito científico.
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Quando o arcebispo D. Avaro tomou conhecimento sobre o projeto do monsenhor Pharoux, chamou-o após a celebração de uma missa para a sua sala e dispôs-se a tratar do assunto.
- Já decidiu a quem vai dedicar o seu livro, monsenhor?
O padre Pharoux ficou incomodado com essa pergunta, sabendo que não seria feita por aquele arcebispo sem intenções mais nobres que mostrar interesse. E depois, ele não tinha a quem dedicar a obra, e exatamente por isso respondeu:
- Parece indiscutível que eu devo dedicar a Deus.
O arcebispo sorriu, desconfortável:
- Sim, sim, realmente, dedicar Àquele sobre cujo Reino você escreve é um gesto sábio, típico de sua pessoa, e decerto será recompensado pelo conjunto de suas obras quando chegar o dia do Juízo, dia de reconstruir aquele Reino tão bem descrito no seu livro, etc, etc...
Depois de dez minutos falando, o arcebispo emendou o assunto a que procurava chegar:
- ...porém, caro monsenhor- dizia ele-, apesar de que ninguém mereça mais do que Deus essa dedicatória, é certo que se pode praticar um gesto ainda mais benevolente e mais sábio, e com recompensas mais imediatas que o Reino dos Céus.
O padre Pharoux franziu a testa.
- Recompensas mais imediatas? Como assim?
- Exatamente, foi o que eu disse- tornou o arcebispo.- Veja bem, monsenhor: Deus muito se alegraria em receber essa dedicatória, mas consideremos que Ele também ficaria satisfeito se, em vez de dedicarmos diretamente a Ele, usarmos isso para o benefício de Sua Santa Igreja aqui mesmo neste reino terrestre.
- Como é que é?- perguntou confuso e aborrecido o padre.
- É o seguinte: o governo da nossa província não se importa muito com o clero, embora reconheça sua importância, e o nobilíssimo doutor nosso interventor está mais ocupado em restaurar as próprias imagem e popularidade, as quais têm decaído por causa da ineficiência de seu mandato em relação aos assuntos do povo. Ora... podemos fazer um favor ao governo dedicando seu livro ao interventor e mostrá-lo como um iluminado por Deus ao povo da província. Que acha, monsenhor Pharoux, não seria essa uma boa obra para com Deus, a Igreja e todo mundo? A recompensa seria imediata: por gratidão o interventor e os partidários nos assistiriam, conseguiríamos maior prosperidade, com mais instalações e estruturas; reformar esta igreja aqui, por exemplo. O senhor não queria isso há tempos?
O padre Pharoux queria, sim, porém não gostava nem um pouco do atual interventor e acharia um desperdício de papel e tinta dedicar-lhe uma obra. Além do mais, não estava crente nas perspectivas “otimistas” de D. Avaro, pois não lhe parecia que aquele governo, em troca de mera popularidade e adulação por parte de Deus, ofereceria assistencialismo graúdo aos clérigos.
- É uma boa oportunidade- insistiu D. Avaro após longamente falar sobre as condições do governo da província-, e sei que Deus renunciaria a ter Sua Representação impressa em uma grande obra teológica se isso trouxesse benefícios à Sua Santa Igreja, pode até ser que Ele prefira que se aja mais com verdadeira sabedoria que propriamente com louvor.
Sobre agir mais com sabedoria que com louvor, o monsenhor Pharoux sabia muito, e decidiu responder nada mais que:
- Como não me seja dado conhecer a vontade de Deus, eu vou pensar a respeito antes de chegar a uma conclusão definitiva sobre a dedicatória, e acho que seria ainda mais apropriado se eu pudesse...
- Sim, sim, pense a respeito- interrompeu rudemente D. Avaro- e dedique a quem mais vale dedicar nesses tempos de tumulto e insensatez, monsenhor. Sei que sua obra fará sucesso, e a mera dedicatória poderá causar grande influência na opinião dos leitores de toda a sociedade, então não se esqueça de seguir um bom caminho. Quando assinar a dedicatória, que seja iluminado pelas sapientíssimas palavras do Cristo: “A semente de trigo, caída na terra, se não morrer, ficará infecunda, mas se morrer, produzirá muitos frutos”, e igualmente a sua dedicatória a Deus produzirá melhores frutos se for sacrificada, então você pode renunciar a ela respaldado pelo Evangelho com plenitude... Dedique ao nosso interventor!
Apresentou ainda muitos outros motivos, e depois exaustivamente repetiu-os para assegurar-se de ter sido compreendido pelo ouvinte que há muito tempo já queria ir embora, preocupado mais em salvar os ouvidos que a alma.
- Pensarei a respeito- disse o monsenhor Pharoux, levantando-se para sair logo da sala.- Preciso retomar os meus afazeres, incluindo o livro.
-Perfeitamente, perfeitamente, pense a respeito, pela maior glória de Deus- disse uma vez mais o arcebispo, conduzindo o aliviado padre até a porta.- Tenha um bom dia, monsenhor, e avalie com razão e fé as minhas palavras! Dedique ao interventor.
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No final das contas, monsenhor Pharoux cedeu e dedicou a grandiosa obra, finalmente publicada, ao interventor. A dedicatória ocupou várias páginas cheias de entusiásticos elogios e, aqui, ali e lá, passagens de propaganda partidária.
Talvez Deus não tenha gostado de ser trocado pelo eminente político, porque quis Ele que, pouco tempo depois, uma revolução terminasse com o interventor sendo deposto e um grupo de oposição subindo ao poder.
Ora, naturalmente a obra de monsenhor Pharoux era um panfleto dedicado ao governo anterior, por isso ele não protestou, nem mesmo se surpreendeu, e demonstrou toda a resignação que um governo poderia desejar, quando todos os exemplares foram recolhidos e queimados.