Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

Minha foto
Nome:
Local: Belém, Pará, Brazil

domingo, janeiro 23, 2011

Felino e Pablo (cont.) - 2

Como Céli não tinha nenhuma idéia em mente, foi convidado à casa de Pablo, que não era tão longe dali. Embora a ocasião de ser convidado à casa de outra pessoa lhe fosse muito estranha, Céli ainda achava melhor do que voltar para aquele instituto nojento.

Entraram por uma rua calma e não muito larga, que Céli não conhecia. A certa altura, ele começou a imaginar se teria sido uma boa idéia esgueirar-se para a casa dos outros em vez de tratar de seus próprios assuntos. Tinha coisas para ler, e sentia que tinha dívidas no estudo do helênico. Além disso, tinha o receio de entediar Pablo com sua companhia, depois de já tê-lo privado de jogar basquete com os amigos verdadeiros.

No final das contas, a casa parecia pequena à primeira vista, mas Céli achou bem confortável o interior, principalmente depois da caminhada sob o sol da tarde. Ao entrarem pela porta da cozinha, sentiu cheiro de peixe frito.

– Parece que o meu pai não está– disse Pablo–, mas deixou almoço. Quer?

– Um pouco, creio– murmurou Céli, enxugando o suor do rosto com a camisa.– Preciso lavar a cara.

– É, vamos deixar as coisas lá em cima.

Subiram para o quarto de Pablo no andar superior. Ao contrário de seu quarto mal projetado e empoeirado no instituto, Céli notou que entrava uma forte corrente de vento pela janela do quarto de Pablo. Os dois deixaram suas mochilas em um canto, e Céli ficou feliz por livrar-se do peso nas costas. Se estivesse em casa, teria tirado os sapatos e a camisa e se estendido longamente na cama, mas não tinha muita certeza de como se comportar em casa alheia, então apenas ficou parado olhando ao redor enquanto Pablo guardava os sapatos e procurava outra roupa no bagunçado guarda-roupas.

– Vai ficar de sapato aqui dentro, mano?– inquiriu Pablo.

– Sei lá. Deixo por aí?

– Junto com a mochila. E não ia se lavar?

– É.

Céli foi até a torneira do banheiro para limpar os braços e o rosto. Não precisava fechar a porta, mas o fez assim mesmo, e ficou durante algum tempo encarando a própria figura no espelho da parede. Em seu alojamento no instituto não havia espelho, e ele não sentia muito a falta de um, mas naquele momento ele se manteve contemplando seu reflexo para avaliar se estava parecendo muito ridículo; ou se pareceria quando saísse.

Pablo bateu na porta.

– Pretende passar o resto do dia aí dentro, mano? Pensei que felinos não gostassem de água.

– Detestam, ainda mais quando não tem toalha– disse Céli, porque não havia mesmo uma.

– Ih. Calma aí, vou trazer.

Céli abriu a porta e logo Pablo lhe deu uma toalha, mas não antes de rir de como ele ficava quando tão molhado, os cabelos bagunçados cobrindo-lhe o rosto.

– Não sei qual é a graça– resmungou Céli, enxugando-se e ajeitando os cabelos.

– Nem eu sei, mas não tem como evitar– riu Pablo, e em troca Céli atirou-lhe na cara a toalha molhada.– Agora dá o fora do meu banheiro, preciso de um banho. Pode ligar a televisão, se quiser.

Enquanto Pablo se fechou no banheiro, Céli, que não tinha vontade de assistir televisão, nem mesmo o hábito, foi até a janela para sentir o forte vento. Dali conseguia enxergar a quadra de basquete a certa distância, pois o bairro de Pablo tinha o relevo um pouco acima dos circunvizinhos; e como praticamente não havia prédios altos nas proximidades, devido à proibição de construí-los na região da orla fluvial, a circulação do vento era intensa. Ele sentia o ar correndo agradavelmente por dentro das roupas. Minutos depois, quando Pablo saiu do banho, Céli ainda estava absorto diante da janela, deixando a barulhenta corrente de vento levar seus pensamentos para longe.

– Que está fazendo aí, mano?

– Hum? Nada não. Aqui tem um vento bom, e tudo.

– Uma das poucas coisas boas de morar nessa parte da cidade. Precisa de um banho também? Posso te emprestar uma roupa.

– Nem preciso, ainda vou ficar um tempo na rua mais tarde. E também não sei se as tuas roupas serviriam em mim.

Provavelmente ficariam meio folgadas porque, como Pablo depois do banho ficou apenas de bermuda, Céli notou que ele tinha porte mais atlético do que o semi-humano percebera até então -- o que lhe trouxe de volta, por um momento, a conhecida sensação de inferioridade em relação ao amigo de músculos mais definidos. Mas Céli não podia esperar outra coisa, afinal não era ele próprio o esportista habitual, e não estava certo de querer tornar-se tão cedo.

– Devem ficar meio folgadas– opinou Pablo com a melhor das intenções.

– É– concordou o felino em seu resmungamento de costume.

Depois de almoçarem, os dois jogaram videogames de luta até perto do final da tarde, Céli conseguindo um placar bastante favorável. Então pelo menos era páreo para Pablo virtualmente, pensou ele.

– Vou admitir, mano, pensei que não soubesses jogar isso.

Parece que não se pode ser ruim em tudo, ocorreu a Céli responder, mas o que ele bem-humoradamente disse foi: – E eu pensei que tu soubesses.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Felino e Pablo (cont.)

Se havia alguma coisa na qual Céli era pior do que em basquete, era matemática. Por isso, na altura em que definitivamente desistiu de tentar acompanhar a aula de logaritmos, começou a rabiscar em seu caderno, tentando desenhar algo. Não que fosse muito bom nisso, também.

Primeiro tentou desenhar um zepelim, e não teve sucesso. Riscou completamente o desenho e virou para uma página em branco. Sem inspiração para tentar outro péssimo rabisco, tentou prestar atenção à aula. Logaritmo? Lógos, a língua helênica. Voltou-se para o caderno e garranchou λóγος na página em branco. Sua caligrafia não era lá muito bonita nem no alfabeto helênico, verdade seja dita. Não obstante, ele debruçou-se e continuou a rabiscar tediosamente: ‘Eν ’αρχñ ’ñν ‘o λóγος. Até que não ficou mal. Animou-se dessa forma a continuar escrevinhando, καì ‘o λóγος ’ñν πρòς τòν... e acabou encontrando um obstáculo.

– Céli! Por que não está prestando atenção?– chamou de longe a voz da professora, que estava logo diante da mesa de Céli.

– Estou escutando, e tudo– arrastou o garoto preguiçosamente.

– Tem certeza? Então qual foi a última coisa que eu disse?

– Estava dizendo que a origem do termo são os helênicos lógos e ’arithmós.

– Eu disse isso há vinte minutos!

– É? Que coisa. Então isso prova de uma vez por todas que o tempo é mesmo relativo.

Graças ao comentário, acabou ficando de castigo depois da aula, mas como a professora ensinava também física, acertou as contas fazendo-o estudar a teoria da relatividade em vez de logaritmos. No entanto, não demorou muito e ele começou a divagar outra vez, pois o exemplo dos trens usado por Einstein em seu texto para demonstrar o princípio da simultaneidade fez Céli voltar o pensamento para os trens de David Lean. Tentou rabiscar um trem atravessando uma ponte sobre um rio. Lógos. Einstein não pensava em palavras, e Céli não conseguia segui-lo muito bem na abstração.

– Está bem, Céli, já pode ir– anunciou a professora algum tempo depois, enquanto guardava o próprio material para ir embora.

– Ir aonde? Não tenho o que fazer lá fora mesmo. Além disso, gostei desse artigo. Agora que comecei a ler, tenho que terminar.

– Pode levar o livro, se quiser, desde que devolva na próxima aula. Aproveite e estude os outros físicos também.

Céli ainda teria muitos outros físicos para estudar pelo resto do ano, de qualquer forma... Einstein, Zweistein, Dreistein e os demais. Klasse, einfach wunderbar, ele pensou. Aceitou a proposta de levar o livro emprestado, mas era verdade que não tinha muita vontade de sair da sala silenciosa e vazia para um pátio cheio de alunos. Se tivesse saído no horário normal teria a esperança de encontrar Pablo em algum lugar lá fora, mas àquela altura ele provavelmente já teria ido. Sem escolha, guardou o livro e o caderno na mochila e saiu da sala para o barulhento corredor. Não sentia vontade de almoçar, muito menos de voltar para o instituto e passar o resto do dia fechado em seu quarto. Por outro lado, não tinha nenhum pretexto para ficar na rua. Foi tediosamente arrastando os pés até a saída do colégio.

***

Para sua surpresa, encontrou Pablo esperando-o na rua. Disfarçou com um indiferente aperto de mão o quanto ficou feliz em vê-lo.

– Ficou preso depois da aula, mano? O que fez agora?

– Merda nenhuma, só provei a teoria da relatividade à professora Simplícia. Hoje em dia isso dá meia hora de castigo em vez de um Nobel. E tu, hun? Pensei que já tivesses ido faz tempo.

– Nada, resolvi esperar. Ainda quer jogar?

– Contigo? Depois daquele dia, não sei, não. Além do mais, deves ter visto que eu não acerto nem jogando sozinho.

– Deixa disso, eu ensino. Não vai ter nada a fazer pelo resto do dia, vai?

– É– resmungou Céli, e aceitou.

Eram quase duas horas da tarde e fazia um tempo extremamente quente. Foram os dois caminhando de volta até a quadra, alguns quarteirões adiante, sem trocar muitas palavras. Não que Céli estivesse outra vez mal-humorado, apenas intrigado por Pablo tê-lo esperado, além de que ainda pensava no desastroso último jogo no qual cometera a suma imbecilidade de entrar.

Quando chegaram mais perto da quadra, Céli xingou ao perceber que estava ocupada, e como se não bastasse, os ocupantes eram o pessoal do Hector, um arruaceiro com quem Céli não tinha o mais cordial dos tratamentos.

– Saco. A última coisa que eu preciso é pisar numa quadra com aquele sujeito uma segunda vez na vida.

– Não vai me dizer que tem medo dele– cutucou Pablo para saber a reação.

– Eu já teria amassado a fuça daquele xorume mal disfarçado de gente, se ele não andasse sempre com mais cinco. Eu queria saber quanto ele é pago para me encher, porque não consigo imaginar que ele faça alguma coisa de graça com tanta dedicação.

– Ele enche todo mundo, não se preocupe com isso. Ele não é tão ruim quanto você pensa.

– Virou advogado dele, agora?– retrucou Céli com alguma hostilidade.

– Não, só quero dizer que você está exagerando um pouco, mano.

– Se fosse antes de ele ter atirado os meus livros na vala, ou de ter me trancado numa sala e jogado a chave no mato, eu também acharia exagero. Quando será que eu posso concluir que ele não presta, quando ele meter a minha cara num sanitário e der descarga? Porque ele tentou fazer isso semana passada, sabia?

– Eu não sabia de nenhuma dessas coisas. Por que não procurou a diretoria?

– Até parece. Se eu contasse, o mais provável seria o diretor abrir pessoalmente a porta do banheiro e estender um tapete vermelho na próxima tentativa do Heitor, porque é amigo do pai dele. Deve ter dinheiros, o pai desse cretino. Além disso, todo mundo ficaria do lado dele, como tu próprio agora.

– Como assim eu?

– É claro. Ele é teu amigo, suponho.

– Ele é, mas isso é diferente. Se eu soubesse que ele fazia essas coisas...

– Não tem importância. Na verdade não é da minha conta, eu nem te conheço faz tanto tempo quanto ele, imagino que tenhas os teus motivos para andar com aquilo. Mas acho que preciso dizer, vê se presta atenção em tipos como ele. É o seguinte...– Mas Céli intuiu que Pablo estava com mais vontade de jogar do que de escutar conselhos sobre que companhias ter, então decidiu pular para o encerramento do assunto:– Porcaria, esqueci o que eu ia dizer. Agora, vou dar um passeio por aí, então até amanhã.

Céli estendeu a mão, mas Pablo, em vez de apertá-la e despedir-se, começou a rir, acertou-lhe de leve um soco no ombro, foi andando, e disse quando Céli o seguiu:

– Perdi a vontade de jogar, sabe. Quer fazer alguma outra coisa?

quarta-feira, janeiro 12, 2011

"Ministros da Magia"

Às vezes pode até parecer, mas um filme não fica pronto por mágica. Alguém precisa ter uma concepção de como serão as cenas, visualmente, emocionalmente, tecnicamente, e passá-las do roteiro para a realidade. O principal encarregado disso é o diretor.

Boa parte do público em geral não se importa com quem dirige os filmes. Talvez por não ter uma noção concreta de onde exatamente faria diferença se este ou aquele diretor fosse responsável pela obra.

Na série Harry Potter, que passou pelas mãos de quatro diretores diferentes, é bastante fácil verificar as particularidades de visão e estilo de cada um. Os sete livros da série compõem uma história criada por uma só autora, J. K. Rowling. Os filmes, por outro lado, são obras criadas diretamente por dezenas de pessoas, e indiretamente por centenas: o roteirista, o diretor de fotografia, o compositor de música, o departamento de arte, equipes de designers, maquiadores, figurinistas, técnicos de som e efeitos especiais, etc, etc. Se cada departamento tabalhasse nas cenas independentemente, e os atores dissessem suas falas como bem entendessem, o resultado seria uma enorme bagunça. É o diretor quem orienta com que forma ficará a obra de toda essa gente.

Cada um deles empregou sua estética, sua técnica e seu ritmo para recontar a história de J. K. Rowling no cinema. Vejamos como.


1. Chris Columbus

Ao começarem as negociações com a Warner Bros. para adaptar o maior best-seller dos últimos tempos, vários diretores conhecidos se propuseram a comandar a superprodução. Na lista de interessados estavam nomes como Terry Gilliam (Monty Python e o Cálice Sagrado), Jonathan Demme (O Silêncio dos Inocentes), Wolfgang Petersen (A História sem Fim), Tim Burton e Steven Spielberg, sendo esse último o mais cotado para dirigir Harry Potter e a Pedra Filosofal.

No entanto, divergências com os produtores e J. K. Rowling – que faziam questão de um elenco britânico e um filme bastante fiel ao original – tiraram Spielberg da questão, e quem assumiu o cargo foi o também americano e bem menos experiente Chris Columbus, o qual conheceu o livro através da filha e, em uma reunião com o produtor David Heyman e executivos da Warner, explicou-lhes a sua visão da história, convencendo-os a colocá-lo no cargo.

Por um lado, o currículo de Columbus, conhecido como diretor de filmes-família (sendo que seu maior hit havia sido Esqueceram de Mim, filme-família por excelência), não era um grande indício de que ele estaria à altura do desafio. Por outro, ele parecia condizer com uma aventura infantil como o primeiro Harry Potter, embora os temores de que ele pudesse infantilizar em excesso filme fossem justificados. Os pontos que mais contaram a favor de Columbus para ganhar a preferência da produção e de J.K. Rowling, entre tantos diretores, parecem ter sido o seu comprometimento em fazer um filme fiel ao original, e a sua habilidade em trabalhar com atores crianças.

No final das contas, a direção de Chris Columbus em A Pedra Filosofal atendeu bem às expectativas do público: a maior parte dos fãs da obra literária afirma que, de todos os diretores, Columbus foi o que mais pôs na tela exatamente aquilo que imaginaram ao ler o livro. Para a crítica, isso é o ponto forte e o ponto fraco do filme, pois ao mesmo tempo em que agrada o público-alvo, tanta fidelidade ao livro faz com que seja um filme sem surpresas.

Ora, Columbus preservou a fidelidade ao original desejada por Rowling, tentando manter o máximo possível de elementos do livro, sem desenvolver algum em particular como linha dramática, preocupando-se menos em condensar do que transpor o mais literalmente possível do livro tudo que coubesse em um filme de duração normal. Segundo Columbus, para caber o livro inteiro seriam necessárias quatro ou cinco horas.

Contentando-se com duas horas e meia mesmo, o diretor apresenta um passo-a-passo inicial no mundo bruxo de J. K. Rowling utilizando um visual limpo, com a fotografia calorosa e a trilha sonora ora melódica, ora vibrante (Columbus dizia ao compositor John Williams exatamente que emoção esperava que a música de cada cena tivesse), construindo um belo senso de deslumbramento e fantasia. Suas instruções ao departamento de arte foram no sentido de que Hogwarts parecesse um lugar que fora criado por magia e existisse desde sempre, e como resultado o ambiente tem um ar atemporal.

Columbus emprega planos bastante tradicionais de Hollywood, do enquadramento até a montagem as cenas têm um andamento estável, sem grandes variações de estilo e ritmo narrativo. O diretor não sobrecarrega as cenas com informações, evita mostrar muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, e emprega composições visuais com bastante objetividade: cada elemento que vemos na tela é auto-explicativo e conduz diretamente ao objetivo da cena. As atuações são contidas, sem excessos emocionais e adstritas ao tipo de cada personagem e sua função na história. É com essa objetividade que conhecemos Hogwarts e os personagens que ali vivem.

Em Harry Potter e a Câmara Secreta, cuja produção começou imediatamente após o encerramento de Pedra Filosofal, Chris Columbus segue como diretor e retoma o mesmo esquema. No segundo filme, embora tenha basicamente o mesmo corpo do primeiro, Columbus procura um tratamento diferente: cenas mais incisivas e com menos deslumbramento do que o filme anterior, alguns ângulos menos convencionais, como tomadas inclinadas, e movimentos de câmera mais livres e ágeis. Um motivo presumível de se usar mais câmera na mão do que no primeiro filme é que, segundo o diretor, tentou-se dar a impressão de um movimento de serpente, o que é evidenciado nos momentos em que Harry escuta a voz do basilisco e a câmera se esgueira nas paredes.

Com o crescimento dos personagens, Columbus não teve dúvida de que o segundo filme deveria ser mais sombrio, e pediu ao diretor de fotografia imagens mais escuras. Por isso, na tela não nos deparamos apenas com cenários pouco iluminados, como também cantos e extremidades escuras e entradas com aparência abissal. Até a água dentro da Câmara Secreta foi tingida de preto para favorecer essa impressão.

Tirando o fato de estar mais obscura, Hogwarts e os personagens que ali moram continuaram essencialmente na mesma. A concepção dos personagens e a forma de dirigir os atores se mantém, bem como os temas e o espírito da trilha sonora, além do encerramento ameno com a câmera se afastando para um plano geral do castelo. Mudanças essenciais vieram com o diretor do filme seguinte.


2. Alfonso Cuarón

Com a saída de Columbus, que embora continuando como produtor deixou vago o cargo de direção para dedicar mais tempo à família, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban foi entregue a um novo diretor. Uma escolha nem um pouco previsível para continuar um trabalho que começou com o estilo ordeiro e polido de Chris Columbus: ao contrário deste, o mexicano Alfonso Cuarón era conhecido por um filme adulto, E a Sua Mãe Também, com o qual recebeu a indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Original. Cuarón inicialmente recusou a proposta, mas voltou atrás após ler os livros de Rowling por insistência do amigo Guillermo del Toro. E ao contrário do que se espera em uma grande franquia, Cuarón teve ampla liberdade para imprimir certa marca autoral ao filme e se permitir amplas intervenções criativas. Não procurou fazer igual nem diferente do antecessor, apenas fazer o filme do seu jeito. Ele próprio disse em entrevista que filmar Prisioneiro foi como fazer um filme independente com um orçamento gigantesco.

A adaptação de Cuarón é menos literal que a de Columbus: Prisioneiro se afirma como filme, e não como suplemento do livro. Pela duração de “apenas” 142 minutos (sendo o filme mais curto que os antecessores), nota-se que Cuarón não pretendeu enfiar na montagem final o máximo possível de material, e sim o que importasse para a consistência daquele filme específico, ainda que respeitando as expressas restrições de Rowling quanto ao que poderia ou não ser incluso ou retirado de modo a afetar os próximos episódios, concentrando a história no ponto de vista de Harry e eliminando sem dó as diversas explicações acessórias e subtramas. Mesmo lamentando os cortes, o produtor David Heyman admite que essa decisão “ajudou a estabelecer uma estrutura mais cinematográfica”.

Em vez da magia acolhedora do diretor anterior, Cuarón opta por um tom mais excêntrico. Criaturas típicas de filmes de fantasia dão lugar a figuras mais familiares ao gênero horror. Por exemplo o barman d’O Caldeirão Furado, Tom, que no primeiro filme era um carismático velhinho, na visão de Cuarón virou uma espécie de Quasímodo, e surgiram seres grotescos como o carrasco deformado e as Cabeças Encolhidas. Hogwarts ganhou uma nova ambientação— e muito mais contornos: além de os terrenos serem mais cheios de declives, o visual do filme é repleto de curvas irregulares na arquitetura dos cenários e nos objetos de cena, além de muitos momentos com chuva e neblina, possivelmente para criar uma atmosfera abstrata (Cuarón elogiou o fato de o livro lidar com “conceitos abstratos”, como viagens no tempo) e por vezes inquietante, à maneira do estilo expressionista.

O próprio modo de filmar e editar diverge completamente dos filmes anteriores. Ao contrário da objetividade do primeiro diretor, Cuarón acrescenta momentos sem significado imediato, como as cenas aparentemente aleatórias de pássaros sendo despedaçados pelo Salgueiro Lutador-- e que só mais ao final do filme terão um sentido de estar ali. Além disso, no próprio set de filmagem Cuarón já tinha em mente a montagem do filme, por isso gravou menos tomadas, sendo todas mais longas e usando menos câmeras, em vez do procedimento de filmar de diversos ângulos e escolher na edição qual deles usar em cada momento.

A câmera raramente fica parada, e Cuarón usa movimentos inesperados, como os dois travellings para dentro do espelho na seqüência do bicho-papão, e aquele que acompanha Harry e Hermione para fora da enfermaria até o pátio exterior. O diretor compôs as cenas para tomadas abertas e usando lentes grande-angulares: primeiro, para evitar o uso genérico e sem objetivo do close-up (uso que ele critica nas produções de Hollywood), usando-o apenas quando acha relevante e, ainda assim, com a ressalva de mostrar a aproximação gradativa da câmera ao personagem ou objeto, em vez de instaurar o close-up na edição simplesmente cortando do plano aberto para o próximo (ressalte-se a elaborada transição de uma panorâmica do imenso salão principal, passando através de um coro de estudantes, até um plano médio de Dumbledore, na mesma tomada!); e segundo, para não perder a noção do que acontece em torno de Harry e manter em vista onde todos os personagens estão situados. Por isso, mesmo durante um close podemos nos dar conta da ação acontecendo ao redor.

As cores fortes dos primeiros filmes cedem lugar a uma fotografia com tonalidades mais frias, mais iluminações cruzadas e contrastes, dando um ar mais hostil e rústico. A trilha sonora de John Williams acompanha a mudança empregando temas menos melodiosos e mais variados, percorrendo do intimista ao grandiloquente, e até o irônico (característica ausente na música dos primeiros filmes), e destaque-se uso de instrumentos medievais que incorporam a atmosfera exótica do filme. O mundo dos bruxos na visão de Cuarón não denota maravilhamento, e ele trata a fantasia com humor, fazendo rápidas alternâncias entre momentos cômicos e sombrios, e de volta ao estado anterior, na mesma cena: a tensão é mais insinuada do que construída, e freqüentemente destruída como por gracejo; por exemplo, o momento em que Harry chega a um parque soturno, um cão preto espectral sai dos arbustos, e logo em seguida surge o Nôitubus Andante ao som de uma música amena, e se inicia uma sequência em que, embora Harry seja apresentado à figura do fugitivo Sirius Black, prevalece o aspecto cômico da viagem no Nôitibus. As atuações são mais livres e expansivas, sendo os personagens menos comportados, bem como o próprio figurino foi subvertido, deixando de lado o uniforme por trajes mais informais.

Por fim, em lugar de o filme terminar com o protagonista voando em direção ao horizonte com sua nova Firebolt, encerra com uma tomada bem fechada do rosto de Harry passando pela tela, sendo também a cena de encerramento mais diferente da série.


3. Mike Newell

Com a saída de Cuarón, que não se dispôs a trabalhar duas vezes seguidas em uma produção dessa escala, o escolhido para dirigir Harry Potter e o Cálice de Fogo foi Mike Newell, ganhador do BAFTA por “Quatro Casamentos e um Funeral”. O fato de ele ser o primeiro diretor inglês a trabalhar em um Harry Potter, além de ter ele próprio estudado em um internato, levantou expectativas entre os fãs e J.K. Rowling.

De fato, Newell enfatiza no filme a atmosfera de internato, à qual os diretores anteriores não haviam dado tanta atenção assim: ele mostra explicitamente os personagens em situações que nos filmes de Columbus não vinham ao caso, e que por Cuarón foram apenas sugeridas, no que diz respeito a interação dos personagens com o sexo oposto, com outros alunos e com os professores. Vemos pela primeira vez coisas tão comuns em colégios, como alunos formando círculo em torno de uma briga e conversando sobre garotas. Ao mesmo tempo essa característica contribui para o quato filme retornar, especialmente depois do ar inusitado e expressivo de O Prisioneiro de Azkaban, a um modelo tecnicamente mais convencional e artisticamente mais mundano.

A direção de Newell é mais parecida com a de Chris Columbus que com a de seu antecessor: segue a mesma estrutura de narrativa, usando planos e cortes ao mesmo estilo, embora de forma menos didática que o diretor dos primeiros filmes. Mas a concepção que Newell apresenta do mundo bruxo é o contrário da magia aurífera e onipresente de Columbus. A fotografia de Cálice de Fogo, feita por Roger Pratt, que trabalhou com Columbus em A Câmara Secreta, tem uma paleta de cores ainda mais fechada e com menos contraste que a de Prisioneiro, predominando ora alguns tons de cinza ou azul-escuro quase monocromáticos, ora um verde-limo desbotado, sendo visualmente mais escuro que os outros filmes. Nesse ambiente, a magia é inserida de uma forma mais cotidiana e menos extraordinária, diferentemente da abordagem deslumbrante de Columbus e a surrealista de Cuarón.

As composições são relativamente mais simples em comparação às de Cuarón, sendo menos amplas, muito menos estilizadas e mostrando menos coisas diversas acontecendo ao mesmo tempo, além de não acrescentar elementos visualmente excêntricos ou planejar transições surpreendentes. Enquanto o diretor de Prisioneiro valorizava o abstrato e o sugestivo, Newell se atém bastante ao concreto e ao explícito ao construir as cenas. Um dos planos mais recorrentes de Newell parece ser um tipo de retrato: vários personagens lado a lado, olhando na direção da tela.

À altura do quarto filme já tinha sido considerada a hipótese de dividir um mesmo livro em duas produções cinematográficas, por causa da extensão do livro, mas o diretor optou por fazer apenas um filme, escolhendo os pontos-chave do enredo e eliminando as sub-tramas, dano ao filme um foco. Ou melhor, dois— o ressurgimento do mal e a puberdade dos protagonistas. Newell dá igual importância às sequências sombrias, aos alívios cômicos e à interação dos personagens, os quais ele faz questão de relembrar que entraram na adolescência.

Na direção de atores, porém, Mike Newell destoa drasticamente não apenas da obra literária, como também dos filmes anteriores, e o resultado causa um estranhamento. É sabido que Newell leu o quarto livro “debaixo de chibatadas”, como ele mesmo declarou, o que explica por que neste filme os personagens têm alguns comportamentos inesperados, como um Dumbledore hiperativo e explosivo, um Voldemort espalhafatoso, um Sr. Crouch inseguro, Snape apelando a dar tabefes nos alunos (e eles achando graça disso), etc.


4. David Yates

Para o filme Harry Potter e a Ordem da Fênix foi escolhido como novo diretor o também inglês David Yates – que acabou ocupando o cargo pelo resto da série.

Yates vem, principalmente, da televisão: em 2003, dirigiu a aclamada série de thriller político Stage of Play, que lhe rendeu uma indicação ao BAFTA TV Award, e em 2005 foi nomeado ao Emmy Award pelo filme para televisão The Girl in the Cafe, com Bill Nighy. Nesse ano foi escolhido diretor do quinto Harry Potter, devido à admiração de David Heyman por seu trabalho na televisão, bem como do conteúdo político de Ordem da Fênix.

Com efeito, Yates tratou com prioridade o enfoque político de Ordem da Fênix. O diretor deu foco a determinados pontos-chave (a relação de Harry com Sirius, o regime educacional de Umbridge e a profecia) e eliminou todos os demais, fazendo do livro mais longo da série o filme mais curto.

Embora se trate de um filme de fantasia, estilisticamente Yates busca uma abordagem mais realista, filmando o mundo mágico de uma perspectiva que ele define como “social-realista” ao mostrar os personagens em conflito com as instituições do mundo bruxo, empregando a fotografia azulada suave e monocromática de Slawomir Idziak que pouco evoca um ambiente de magia. A impressão de realismo é amparada pelas diversas tomadas com câmera na mão, considerada uma das marcas do estilo de Yates.

Possivelmente é o diretor que mais procurou conferir através das atuações o elemento dramático dos filmes. É também Yates quem mais se aproveita da edição para contar a história, usando recortes em seqüências não-lineares, como aquela em que Umbridge inspeciona os professores, e resumindo informações em planos-relâmpago, como é o caso da pior lembrança de Snape, contada em cortes velozes.

Em Harry Potter e o Enigma do Príncipe, David Yates deixa totalmente de lado o plano de fundo político (por isso eliminando até mesmo a nomeação do novo ministro) e concentra o filme na interação dos personagens. Decidiu fazer o filme mais leve, com mais atenção ao aspecto da comédia romântica, dando-lhe o mesmo peso que os momentos sombrios. Desta vez, com o diretor de fotografia Bruno Delbonnel, afasta-se da abordagem realista e opta por um visual mais estilizado, com tomadas mais específicas (o que significa menos câmera na mão e composições visuais mais elaboradas) e cores mais contrastantes. Yates revela, ainda, a influência de um outro David que é um dos maiores cineastas britânicos, David Lean: a ambientação da seqüência em que Dumbledore encontra o jovem Tom Riddle em um obscuro orfanato evoca a abertura do filme “Oliver Twist” de Lean.

Por fim, a divisão de Harry Potter e as Relíquias da Morte em duas partes disponibilizou mais metragem para que Yates pudesse abarcar no filme quase todos os pontos mais importantes do livro. Também deu espaço para o diretor abdicar de sua edição corrida e manter longas cenas de exposição, como os personagens olhando para o horizonte e o monólogo de Rony ao voltar para o grupo. Por se tratar de um filme de estrada, em que Harry, Rony e Hermione passam grande parte do tempo viajando sozinhos, o foco narrativo de Yates, desta vez, foi o trio, razão pela qual as histórias paralelas de Rony e Hermione têm seu lugar na edição final. Por ser novamente um episódio com conteúdo político, Yates até certo ponto retoma o seu “social-realismo”, usando uma fotografia fria e austera, e ainda filmando uma perseguição na floresta com câmera na mão e sem trilha sonora. Outra característica de Yates é achar mais eficiente o silêncio no lugar de música nas cenas culminantes, como faz também no duelo de Dumbledore contra Voldemort no quinto filme, e no breve confronto de Harry e Snape no final do sexto.

Coube a David Yates o desfecho da série, com Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte II, atualmente em fase de pós-produção.