Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

Minha foto
Nome:
Local: Belém, Pará, Brazil

quarta-feira, outubro 31, 2007

Dia da ira (V)

Semjaza achava belas todas as mulheres humanas, mas as consortes de Azazel eram mais ainda, pois ele lhes criara adornos e as ensinara a se enfeitar, e aos homens ensinara a fabricar instrumentos de guerra, assim instigando, algumas vezes propositalmente ou não, rivalidades e morticínios sobre a terra.
Mas nesse período Semjaza se encontrava frustrado e abalado demais para perceber esses acontecimentos, e por muito tempo ele ficou vagando em lugares ermos, evitando os seus companheiros angelicais e os humanos, alheio às obras desses e daqueles, e também às de seus próprios filhos, como dos filhos dos outros Vigilantes. Assim ele estava distante e sozinho com suas mágoas, enquanto cresciam os males do mundo e a humanidade travava longas guerras fratricidas.
Por outro lado, quem estava atento era o Demiurgo, o governante do Reino do Céu, e ele sabia que seu objetivo de controlar a humanidade poderia ser frustrado se os filhos dos anjos rebeldes se tornassem numerosos a ponto de os Vigilantes poderem rivalizar com ele. Assim ele disse ao arcanjo Miguel:
- Vai a Semjaza e anuncia seu crime, e a todos os que a ele se associam, que se uniram às mulheres e se corromperam de impureza, e abandonaram o estado perpétuo de santidade. Dize-lhes que serão testemunhas da destruição de seus filhos, em conseqüência de todos os seus atos de blasfêmia.
O arcanjo Miguel desceu à Terra com consentimento, em espírito, e ao finalmente encontrar Semjaza no deserto avisou-lhe que uma sentença pendia sobre ele e seus companheiros:
- Ele vos aprisionará. Não obtereis paz nem compaixão, pela tirania e opressão que ensinastes sobre a terra. Quando vossos filhos forem mortos, sereis amarrados por setenta gerações debaixo da terra, até o dia da ira e da consumação se completar. Naquele dia sereis precipitados na profundeza de fogo e atormentados para todo o sempre.
Semjaza escutou com apatia, e por fim respondeu:
---

- Eu não ligo a mínima.
A mesma resposta que ao arcanjo Miguel, Semjaza deu várias eras depois a D. Rossini na sombria sala de interrogatório da Catedral da Santa Sé.
- Ainda não chegamos ao extremo- bufou o arcebispo.- Tenho paciência, ainda podemos prolongar seu sofrimento por semanas ininterruptas.
- Já fui ameaçado com o tormento eterno, e não me importei. Por que algumas semanas deveriam me assustar?- sussurrou Semjaza, acorrentado à parede com os braços abertos.
Azazel espetou-lhe mais algumas vezes o torso despido com a tenaz em brasa, e até ele parar de se debater D. Rossini ficou andando de um lado a outro entre os hediondos instrumentos da sala. Quando o demônio estava de volta em condições de dialogar, o arcebispo parou diante dele e olhou-o nos olhos opacos.
- Quer dizer algo?
- Eu já fui ameaçado com o fogo perpétuo, e isso é só uma tenaz- disse Semjaza.
D. Rossini golpeou-o a socos e chutes, agora sem nenhum espírito metódico ou sentido técnico, apenas com raiva comum. Ele já havia tentado várias formas de tormento e o demônio não demonstrava o desespero pressuposto, nem fazia menção de se render. Por fim o arcebispo enxugou o suor do rosto com a veste eclesiástica e procurou novamente os olhos de Semjaza.
- Você vê que eu sou um negociante, não um inquisidor- apelou D. Rossini.- Quero falar de negócios, portanto. Não sei por que você está desperdiçando com essa teimosia o tempo que poderíamos aproveitar acertando nossas cláusulas. Sabe, você não tem escapatória nenhuma. Sua missão para me matar era sigilosa, logo ninguém sabe que está aqui. A única maneira de você sair vivo e inteiro é aceitar as minhas disposições. Por que não pode fazer isso? Prefere ficar sofrendo, enquanto os danos se tornam cada vez mais irreparáveis?
- Apesar de na maioria das coisas você não ter nenhuma razão- suspirou Semjaza-, pelo menos tinha quando disse que as criaturas elevadas escolhem a satisfação do espírito, não do corpo. D. Rossini, meu espírito está melhor do que esteve em muitas eras, e lidar com essa felicidade é tão difícil que não consigo pensar em mais nada, nem na dor, nem em negócios. Mas não se incomodem, podem continuar, finjam que eu nem estou aqui.
D. Rossini xingou enfurecido, e Azazel sugeriu humildemente:
- Ele deve estar entorpecido, e só vai ficar cada vez mais, até a inconsciência. Não seria melhor pararmos até ele recuperar a lucidez?
- Com os diabos, não!- gritou D. Rossini.- Você é outro idiota! Continue, e progressivamente use meios mais drásticos até ele ceder, ou morrer!- Ele respirou fundo e enxugou outra vez o suor do semblante.- Vou para o meu quarto, avise-me quando conseguir um desses resultados.
O arcebispo foi embora em passos rápidos, e a sala passou alguns minutos em silêncio. Azazel passou vários minutos parado, segurando inocentemente a tenaz em brasa, e parecia mais mortificado que sua vítima. Semjaza levantou a cabeça com esforço, e tentou falar o mais próximo possível do anjo:
- Não sinta inveja. Em vez de invertermos nossas posições, eu escolheria nos resolvermos definitivamente. Sei como se sente, e deixo você decidir quando quiser.