Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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terça-feira, setembro 13, 2011

Proteus

[Pequeno exercício de tradução de algumas páginas do Proteus, terceiro capítulo do livro "Ulysses" de James Joyce. Nesse capítulo, narrado ora em terceira, ora em primeira pessoa, o personagem Stephen Dedalus caminha na praia pensando em diversos assuntos, e a narrativa segue o fluxo de seus pensamentos, geralmente sobre filosofia e arte, nem sempre tão compreensíveis e às vezes sem nexo aparente. Mas é um capítulo interessante, de qualquer forma. E com notas lá no final para parecer menos doido~]





Inelutável modalidade do visível: ao menos isso se não mais, pensado através de meus olhos. Assinaturas de todas as coisas estou aqui para ler, desova marítima e escombro marítimo, a maré aproximante, aquela bota enferrujada. Verde-fleuma, prateado-azul, ferrugem: sinais coloridos. Limites do diáfano. Mas ele acrescenta: em corpos. Então ele percebia os tais corpos antes dos tais coloridos. Como? Batendo a cabeça contra eles, claro. Vá com calma. Careca ele era e um milionário, maestro di color che sanno. Limite do diáfano dentro. Por que dentro? Diáfano, adiáfano. Se você pode colocar seus cinco dedos através dele, é um portão, se não, uma porta. Feche seus olhos e veja.

Stephen fechou os olhos para ouvir suas botas esmagarem escombros e conchas fissurando-se. Você está caminhando por isso de algum qualquer modo. Estou, um passo largo por vez. Um muito curto espaço de tempo através de muito curtos tempos de espaço. Cinco, seis: o nacheinander. Exatamente: e essa é a inelutável modalidade do audível. Abra seus olhos. Não. Jesus! Se eu caísse de um penhasco que sobrepende de sua base, caísse através do nebeneinander inelutavelmente. Estou prosseguindo bem no escuro. Minha espada de pó balança ao meu lado. Tateie com ela: eles tateiam. Meus dois pés nas botas dele estão no final da perna dele, nebeneinander. Soa sólido: feita pela marreta de Los Demiurgos. Estou caminhando para dentro da eternidade ao longo da praia de Sandymont? Quebra, craque, crique, crique. Dinheiro do mar selvagem. Dominie Deasy conhece-as todas.

Não virás a Sandymount,
Madeline a égua?

Ritmo começa, você vê. Eu ouço. Um tetrâmetro cataléctico de iambos marchando. Não, a galope: delineiem a égua.

Abra seus olhos agora. Abrirei. Um momento. Tudo desapareceu desde então? Se eu abrir e ficar para sempre no negro adiáfano. Basta! Verei se posso ver.

Veja agora. Eis todo o tempo sem você: e sempre será, mundo sem fim.

Elas vieram descendo os degraus do terraço de Leahy prudentemente, Frauenzimmer: e descendo a inclinante margem flacidamente seus pés desajeitados afundando na areia sedimentada. Como eu, como Algy, descendo para nossa poderosa mãe. A número um balançava pesadamente a sua bolsa de parteira, a sombrinha da outra fincada na praia. Vindo das liberdades, de folga pelo resto do dia. A Sra. Florence MacCabe, supérstite do falecido Patk MacCabe, profundamente lamentado, de Bride Street. Uma das de sua irmandade puxou-me guinchando para a vida. Criação a partir do nada. O que ela tem na bolsa? Um aborto com um cordão umbilical pendurado, acolhido numa gaze rosada. Os cordões de todo elo de volta, cabo fibritrançante de toda carne. É por isso que os monges místicos. Sereis como deuses? Olhai dentro de seus onfalos. Alô. Aqui é Kinch. Ligue-me com Edenville. Aleph, alpha: zero, zero, um.

Esposa e parceira ajudante de Adam Kadmon: Heva, nua Eva. Ela não tinha umbigo. Olhe. Ventre sem defeito, protuberando grande, um broquel de velino esticado, não, trigo alvimontoado, oriente e imortal, situando-se de sempiterno em sempiterno. Ventre de pecado.

Ventrado em escuridão de pecado eu fui também, feito não criado. Por eles, o homem com minha voz e meus olhos e uma mulher-fantasma com cinzas no hálito. Eles se engancharam e dividiram, cumpriram a vontade do acasalador. Desde antes dos tempos Ele me quis e que não me queira afastar agora nem jamais. Uma lex aeterna permanece junto a ele. É essa então a divina substância na qual o Pai e o Filho são consubstanciais? Onde está o pobre caro Ário para tentar conclusões? Guerreando por toda a vida na contransmagnificandexplosãojudaicatancialidade. Heresiarca mal-horoscopizado. Num lavabo grego ele respirou seu último respiro: eutanásia. Com mitra de gemas e com báculo, assentado sobre seu trono, viúvo de uma cátedra viúva, com o omofório rijo, com a popa coagulada.

Ares romperam ao seu redor, ares cortantes e ávidos. Elas estão vindo, ondas. Os cavalos-marinhos de crina branca, mordendo as rédeas de vento cintilante, os corcéis de Mananaan.

Não devo esquecer a carta dele para a imprensa. E depois? O Navio, meia dúzia. A propósito, vá com calma com aquele dinheiro como um bom jovem imbecil. Sim, eu devo.

Seu passo afrouxou. Aqui. Vou para a casa da tia Sara ou não? A voz do meu pai consubstancial. Viu alguma coisa do seu irmão artista Stephen ultimamente? Não? Ele não está mesmo no terraço de Strasburg com sua tia Sally? Ele não podia voar um pouco mais alto que aquilo, hein? E e e e nos diga, Stephen, como está o tio Si? Ó Deus pranteante, as coisas em que me meti. Us meninos lá em cima nu palheiro. O pequeno contador bêbado e seu irmão, o tocador de corneta. Gondoleiros altamente respeitáveis. E o Walter de olho oblíquo dizendo senhor ao pai, nada menos. Senhor. Sim, senhor. Não, senhor. Jesus chorou: e pudera, por Cristo.

Puxo a campainha chiante do chalé deles com persianas fechadas: e espero. Eles me tomam por um pardo, espiam de um cunhal vantajoso.

– É Stephen, senhor.

– Deixe-o entrar. Deixe Stephen entrar.

Um ferrolho afastado e Walter me dá as boas-vindas.

– Pensamos que era outra pessoa.

Em sua larga cama tio Richie, entre travesseiros e lençóis, estende sobre o montículo de seu joelho um robusto antebraço. Torso limpo. Ele lavou a metade de cima.

– Dia, sobrinho.

Ele deixa de lado a caderneta portátil em que esboça as contas de custas para a apreciação de Mestre Goff e Mestre Shapland Tandy, preenchendo consentimentos e buscas comuns e um mandado de Duces Tecum. Uma moldura de carvalho fóssil sobre sua cabeça calva: o Requiescat de Wilde. O zumbido de seu assovio extraviante traz Walter de volta.

– Sim, senhor?

– Malte para Richie e Stephen, diga à mãe. Cadê ela?

– Banhando Crissie, senhor.

A parceirinha de leito do papai. Torrão de amor.

– Não, tio Richie...

– Chame de Richie. Maldita seja sua água mineral. Ela diminui. Uísque!

– Tio Riche, realmente...

– Sente-se, ou pelo diabo, vou derrubá-lo.

Walter estreita os olhos em vão em busca de uma cadeira.

– Ele não tem onde sentar, senhor.

– Ele não tem onde pôr, seu cara de careta. Traga a nossa cadeira de Chippendale. Vai querer uma mordida de alguma coisa? Nada de suas besteirinhas aqui; uma riqueza de toucinho frito com arenque? Certeza? Tanto melhor. Não temos nada em casa além de pílulas contra dores nas costas.

All’erta!


Ele zumbe compassos da ária de sortita de Ferrando. O maior número, Stephen, na ópera inteira. Escute.

Seu assovio melodioso soa outra vez, otimamente sombreado, com corredeiras do ar, seus punhos megatamboreando sobre seus joelhos almofadados.

O vento está mais doce.


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NOTAS

- "maestro di color che sanno" (mestre daqueles que sabem): Referência a Aristóteles, conforme descrito por Dante no Canto IV da Comédia. O primeiro parágrafo trata das teorias dos sentidos.

-"Se você pode colocar seus cinco dedos através dele, é um portão, se não, uma porta": Paródia de uma definição de Samuel Johnson no Dicionário da Língua Inglesa -- "Porta é usado para casa, e portões para cidades e edifícios públicos, exceto em caso de licença poética."

- "Meus dois pés nas botas dele estão no final da perna dele": dele = Buck Mulligan, a quem pertenciam as botas, que ficaram com Stephen depois que Mulligan jogou fora.

- "Los Demiurgos. Estou caminhando para dentro da eternidade": Referência à obra de William Blake, na qual a entidade Los personifica a força criadora da imaginação.

- "Dinheiro do mar selvagem": conchas. Shells era uma gíria para dinheiro.

- "ares cortantes e ávidos": nipping and eager airs, expressão shakesperiana usada por Horácio enquanto vigia à espera da aparição do fantasma do pai de Hamlet.

-"espiam de um cunhal vantajoso": coign of vantage, outra expressão usada por Shakespeare, na cena em que Duncan e Banquo se aproximam do castelo de Macbeth.

7 Comentários:

Blogger Unknown disse...

Gostei muito do seu blog!

Joyce é fantástico.

10:02 AM  
Blogger Unknown disse...

Este comentário foi removido pelo autor.

10:02 AM  
Blogger Sphynx disse...

Eu nem sabia que alguém ainda vinha aqui, hehe.

Obrigado pelo comentário :]

1:19 AM  
Anonymous Felipe Ucijara disse...

gostei, me ajudou a entender algumas coisas dessa passagem do Joyce: alguém sabe de onde vem a expressão "os corcéis de Mananaan"?

11:34 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Nas mitologias irlandesa, escocesa e da Ilha Celta de Man, "Manannán Mac Lir" é o deus dos oceanos, com é "Posseidon" - Netuno - na Odisséia de Homero. Talvez tenha algo a ver, não sei com certeza.

3:44 AM  
Anonymous Anônimo disse...

"Não virás a Sandymount, Madeline égua?" - "Won't you come to Sandymount, Madeline mare?" - Talvez seja um trocadilho e uma referência irônica a "Madeleine Lemaire" - 1845 - 1928 - famosa pintora francesa; "mare" é égua, em inglês; e em francês é poço de água estagnada - "maire" em francês é um título importante, de chefe do corpo municipal - então, tem-se um trocadilho confuso: "le" mare, a égua "suja"; e "maire", importante.

3:50 AM  
Anonymous Anônimo disse...

"Cavalgando as ondas em seu corcel, ou navegando-as em seu barco está Manannan Mac Lir, filho de Lir, o Mar."

3:55 AM  

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