Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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Local: Belém, Pará, Brazil

segunda-feira, outubro 08, 2007

A Dedicatória

- Por que não escreve uma grande obra de teologia, monsenhor Pharoux?- disse-lhe certa vez o vigário, um homenzinho careca e bem mais velho, naquele tempo já sem grandes pretensões religiosas e que, conseqüentemente, as depositava nos outros mais novos.- Suas idéias têm notável substância, então por que não as sintetiza no que pode vir a ser um trabalho primoroso?
Monsenhor Pharoux encontrou ali uma grande oportunidade. Pouco tempo antes ele havia ganhado o título honorífico de monsenhor, e havia muito escrevia ensaios teológicos, alguns apenas esboçados e outros muito extensos, menos por dedicação do que pela necessidade de expressar suas idéias a folhas em branco, pois lhe faltavam amigos bons ouvintes; e em especial porque, ao contrário de afetuosos confidentes, algumas páginas bem escondidas não poderiam denunciar seus eventuais deslizes heréticos e tendências políticas à censura. Apesar de ser eclesiástico, ele odiava a sensação de ser censurado e reprimido, por isso muito frustrante seria iniciar um projeto e tê-lo fiscalizado antes de consolidar suas idéias mais sensacionalistas, comprometendo assim o retorno financeiro.
Pois bem, ele prontamente partiu para a compilação e adaptação de seus manuscritos, e não tardou a lhes atribuir o título geral de O Reino de Deus. Regnum Dei para os mais conservadores. Ali depositou longas análises sobre vários teóricos cristãos ou não, discursou contra os maniqueus, a favor de Heráclito e cuidadosamente neutro em relação a Deus-- e mais ainda aos políticos locais. Escreveu até sobre a hierarquia dos anjos e a disposição dos astros em hora de nascimento das pessoas, com tratamento muito científico.
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Quando o arcebispo D. Avaro tomou conhecimento sobre o projeto do monsenhor Pharoux, chamou-o após a celebração de uma missa para a sua sala e dispôs-se a tratar do assunto.
- Já decidiu a quem vai dedicar o seu livro, monsenhor?
O padre Pharoux ficou incomodado com essa pergunta, sabendo que não seria feita por aquele arcebispo sem intenções mais nobres que mostrar interesse. E depois, ele não tinha a quem dedicar a obra, e exatamente por isso respondeu:
- Parece indiscutível que eu devo dedicar a Deus.
O arcebispo sorriu, desconfortável:
- Sim, sim, realmente, dedicar Àquele sobre cujo Reino você escreve é um gesto sábio, típico de sua pessoa, e decerto será recompensado pelo conjunto de suas obras quando chegar o dia do Juízo, dia de reconstruir aquele Reino tão bem descrito no seu livro, etc, etc...
Depois de dez minutos falando, o arcebispo emendou o assunto a que procurava chegar:
- ...porém, caro monsenhor- dizia ele-, apesar de que ninguém mereça mais do que Deus essa dedicatória, é certo que se pode praticar um gesto ainda mais benevolente e mais sábio, e com recompensas mais imediatas que o Reino dos Céus.
O padre Pharoux franziu a testa.
- Recompensas mais imediatas? Como assim?
- Exatamente, foi o que eu disse- tornou o arcebispo.- Veja bem, monsenhor: Deus muito se alegraria em receber essa dedicatória, mas consideremos que Ele também ficaria satisfeito se, em vez de dedicarmos diretamente a Ele, usarmos isso para o benefício de Sua Santa Igreja aqui mesmo neste reino terrestre.
- Como é que é?- perguntou confuso e aborrecido o padre.
- É o seguinte: o governo da nossa província não se importa muito com o clero, embora reconheça sua importância, e o nobilíssimo doutor nosso interventor está mais ocupado em restaurar as próprias imagem e popularidade, as quais têm decaído por causa da ineficiência de seu mandato em relação aos assuntos do povo. Ora... podemos fazer um favor ao governo dedicando seu livro ao interventor e mostrá-lo como um iluminado por Deus ao povo da província. Que acha, monsenhor Pharoux, não seria essa uma boa obra para com Deus, a Igreja e todo mundo? A recompensa seria imediata: por gratidão o interventor e os partidários nos assistiriam, conseguiríamos maior prosperidade, com mais instalações e estruturas; reformar esta igreja aqui, por exemplo. O senhor não queria isso há tempos?
O padre Pharoux queria, sim, porém não gostava nem um pouco do atual interventor e acharia um desperdício de papel e tinta dedicar-lhe uma obra. Além do mais, não estava crente nas perspectivas “otimistas” de D. Avaro, pois não lhe parecia que aquele governo, em troca de mera popularidade e adulação por parte de Deus, ofereceria assistencialismo graúdo aos clérigos.
- É uma boa oportunidade- insistiu D. Avaro após longamente falar sobre as condições do governo da província-, e sei que Deus renunciaria a ter Sua Representação impressa em uma grande obra teológica se isso trouxesse benefícios à Sua Santa Igreja, pode até ser que Ele prefira que se aja mais com verdadeira sabedoria que propriamente com louvor.
Sobre agir mais com sabedoria que com louvor, o monsenhor Pharoux sabia muito, e decidiu responder nada mais que:
- Como não me seja dado conhecer a vontade de Deus, eu vou pensar a respeito antes de chegar a uma conclusão definitiva sobre a dedicatória, e acho que seria ainda mais apropriado se eu pudesse...
- Sim, sim, pense a respeito- interrompeu rudemente D. Avaro- e dedique a quem mais vale dedicar nesses tempos de tumulto e insensatez, monsenhor. Sei que sua obra fará sucesso, e a mera dedicatória poderá causar grande influência na opinião dos leitores de toda a sociedade, então não se esqueça de seguir um bom caminho. Quando assinar a dedicatória, que seja iluminado pelas sapientíssimas palavras do Cristo: “A semente de trigo, caída na terra, se não morrer, ficará infecunda, mas se morrer, produzirá muitos frutos”, e igualmente a sua dedicatória a Deus produzirá melhores frutos se for sacrificada, então você pode renunciar a ela respaldado pelo Evangelho com plenitude... Dedique ao nosso interventor!
Apresentou ainda muitos outros motivos, e depois exaustivamente repetiu-os para assegurar-se de ter sido compreendido pelo ouvinte que há muito tempo já queria ir embora, preocupado mais em salvar os ouvidos que a alma.
- Pensarei a respeito- disse o monsenhor Pharoux, levantando-se para sair logo da sala.- Preciso retomar os meus afazeres, incluindo o livro.
-Perfeitamente, perfeitamente, pense a respeito, pela maior glória de Deus- disse uma vez mais o arcebispo, conduzindo o aliviado padre até a porta.- Tenha um bom dia, monsenhor, e avalie com razão e fé as minhas palavras! Dedique ao interventor.
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No final das contas, monsenhor Pharoux cedeu e dedicou a grandiosa obra, finalmente publicada, ao interventor. A dedicatória ocupou várias páginas cheias de entusiásticos elogios e, aqui, ali e lá, passagens de propaganda partidária.
Talvez Deus não tenha gostado de ser trocado pelo eminente político, porque quis Ele que, pouco tempo depois, uma revolução terminasse com o interventor sendo deposto e um grupo de oposição subindo ao poder.
Ora, naturalmente a obra de monsenhor Pharoux era um panfleto dedicado ao governo anterior, por isso ele não protestou, nem mesmo se surpreendeu, e demonstrou toda a resignação que um governo poderia desejar, quando todos os exemplares foram recolhidos e queimados.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Uma delícia de ler!

Agora quero o livro. =)

2:59 AM  

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