Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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quinta-feira, outubro 18, 2007

Oferta Irrecusável (III)

- Posso lhes oferecer muita coisa- repetiu Semjaza, e quase não era mais luminoso.- Até valores mais altos. O que desejarem pode ser objeto do nosso contrato. Josef Sikes, qual é o seu valor mais alto?
Aquela pergunta por si só paralisou Sikes na cadeira. Ele ficou quase um minuto em silêncio, e durante esse tempo nem Vinçart nem o anjo fizeram nada. A demora era muito natural, e por fim a resposta foi uma pergunta:
- O que quer dizer com isso?
- Refiro-me ao sentido da sua vida- tornou o anjo.- Posso oferecer a realização dele. Qualquer coisa que você tenha buscado durante toda a sua existência, eu posso conceder, ou ajudar a encontrar.
- É impossível- disse Sikes brandamente.- Não há nada que você possa me oferecer. Eu rejeito o contrato.
A luz de Semjaza aumentou um pouco, mas nenhum dos homens notou. Vinçart levantou-se do sofá com um salto.
- Você pode ter entendido mal, sr. Sikes- disse ele.- Este anjo está usando um termo técnico de pactos demoníacos. Lembra-se da teoria da ética material de valores de Max Scheler? É algo semelhante, pelo menos em realização de valor.
- Não estou muito bem lembrado- resmungou Sikes.
- Toda ação humana tem em vista a realização de um valor- explicou Vinçart-, e todo valor engrandece o ser humano, confere-lhe dignidade e lhe possibilita achar um caminho para a felicidade. Para toda conduta existe um valor a alcançar. O que dá um sentido à vida humana é valor, e os demônios conhecem todos muito bem, por isso seus pactos têm conteúdo axiológico sempre, é isso que eles exploram. Todos os objetivos que uma pessoa pode definir para sua vida são vinculados a um valor que ela quer realizar. O desejo causa sofrimento, e a realização do valor é a solução. É para isso que vivemos, para essas grandes esperanças, caso contrário não suportaríamos um só dia na terra.
- Entendo. E por acaso qual é o seu valor, sr. Vinçart?
- É a economia. Afinal, eu não tenho religião, portanto não reconheço um valor sacro que me leve a viver pela salvação da alma. Não tenho preferência política alguma, logo não é ideologia o meu valor. Não tenho interesse estético, então a beleza não me é referencial para nada. Não me preocupo com as pessoas em particular ou com a sociedade como um todo, daí não ser o bem comum o meu valor. Nem a minha própria pessoa eu vejo sentido em aprimorar, pois a virtude não é a minha finalidade. O meu sentido, sr. Sikes, é o dinheiro, e apenas o dinheiro. Não tenho perspectiva de direcionar minha existência para outro objetivo senão acumular dinheiro. Todos os outros valores são inócuos em um mundo perverso. Somente o dinheiro é um valor real e eficaz, e uma realização plena.
- O poder é o maior valor- interpôs Semjaza; seu aspecto era de sombra.
- Você está equivocado- disse Vinçart.- Todos os valores são inerentes ao poder, é para isso que eles servem. O poder não é um valor, ele é o próprio valor em si, o valor absoluto. Adquire-se poder através dos valores, um dos quais o dinheiro. Mas um líder espiritual tem poder, um chefe de Estado tem poder, um grande artista tem poder, eu e Sikes temos poder. Qualquer patife a que outras pessoas se sujeitem de bom grado tem poder.
- Entendo- disse Semjaza em voz baixa.- Qualquer um que seja admirado ou seguido tem poder, disso eu sei muito bem, obrigado. Vontade de potência... há muito tempo não penso nesse assunto, mas não posso fazer um pacto sem considerá-lo, é claro. Se fizéssemos o contrato eu poderia lhe dar dinheiro perpétuo, Vinçart. Todo o dinheiro do mundo.
- E assim eu ficaria fora de mercado. Valores estritamente materiais têm essas problemáticas limitações. Não, obrigado, não quero fazer contrato nenhum. Onde estavam? Ah, sim. Supondo que o valor mais alto do sr. Sikes também seja o dinheiro, e considerando que ele já tem muito, talvez ele não queira fazer esse contrato afinal de contas.
Mas Sikes destroçou com um golpe todas as torres de dinheiro sobre a escrivaninha.
- É claro que não é esse o meu valor!- falou de repente, levantando-se.- O dinheiro não passa de um meio. Eu vejo sentido em experiências mais sublimes.
- Sim? Muito interessante. Acho espantoso nunca termos conversado a respeito, depois de tantos anos como sócios. Pensei que tivéssemos o mesmo objetivo, o lucro. Mas então, corrija-me.
- O meu objetivo, sr. Vinçart, é a vida eterna!
- Ora essa- disse Vinçart apenas, sem achar mais palavras.
- Então não há de recusar a minha proposta- fez Semjaza em continente triunfo.- Não posso, ainda, lhe dar a vida eterna, mas posso prolongar sua existência por muitas gerações, e ainda prestar toda a minha habilidade e sabedoria, ajudando-o de todas as formas possíveis na busca pela imortalidade.
- E a minha prestação?- perguntou Sikes.
- Tudo que eu peço em troca- respondeu o anjo- é ser o seu sócio. E também efetivarmos juntos o projeto de atacar e conquistar o Reino do Céu.
Sikes silenciou.
- Parece muito razoável. Não há por que recusar - avaliou Vinçart secamente.
- Mas eu vou.
Sikes sentou-se e cruzou os braços.
- O quê?- gritou Semjaza.
- Ora essa- manifestou Vinçart.
Parecendo contente, Sikes levantou-se e vestiu um casaco.
- Estou com muita fome- declarou.- Vou jantar no Don Vito hoje. Quer me acompanhar, sr. Vinçart? Por minha conta.
- É claro.
- A música ao vivo lá sempre é muito boa. Gosta de música, anjo?
- Por que recusou o contrato?- perguntou Semjaza. Estava abatido, mas sua forma outra vez pendia para angelical.
- É difícil explicar- disse Sikes, colocando seu chapéu.- Para realizar meus valores, gosto de independência, quanto mais melhor. E depois, violaria um princípio meu. Sei que um pacto demoníaco é mais que um acordo de vontades, gera não só obrigação, mas proximidade espiritual também. Não posso ceder a esse luxo. Seríamos dependentes demais um do outro, e isso só atrapalharia a minha vida. Vivo perigosamente, quem está comigo não está seguro, e eu detestaria precisar ficar me preocupando com o meu contratante, mesmo que ele fosse um poderoso demônio. Seria como colocar minha família no lugar dos meus guarda-costas. Não, melhor deixá-los longe; todos, inclusive eu, ficam mais seguros assim. Não se ofenda, anjo, não é que eu o esteja mandando pentear macaco, o problema é administrativo. Mas, não obstante, quando você se tornar demônio, posso empregá-lo como botão. Que acha?
Semjaza alargou as asas luminosas.
- Se perdi essa oportunidade, Josef Sikes- disse ele-, não terei outra, e continuarei como anjo. Jamais conseguirei fazer uma oferta tão irrecusável quanto essa à pessoa certa. Creio que isso define a minha natureza, quer eu goste ou não. Talvez eu goste. Não tenho certeza do que eu desejo. Diferente dos humanos e dos demônios, os anjos não entendem bem as questões de valor.
- Mas um anjo caído sim, acredito- interveio Vinçart.- Então, vem jantar conosco?
- Não. Nossa negociação está encerrada, então não precisamos nos ver novamente. Portanto, adeus.
Ele saltou por cima da escrivaninha e desapareceu pela janela, deixando a sala como originalmente. Pareceu aos dois homens que ali nunca fora tão escuro.
- Acho que dispensou uma excelente oferta, sr. Sikes.
- Não. Mas dispensei um excelente capanga, sr. Vinçart.
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Minutos depois, os dois desciam as escadarias saindo do grande prédio do escritório de advocacia. O pouco movimento da rua fazia Sikes, Vinçart e os três guarda-costas parecerem um grupo chamativo. Outra coisa que não passava despercebida era um homem tentando arrombar o Rolls Royce estacionado na calçada.
- Meu carro! Peguem aquele pilantra- ordenou Sikes.
Os guarda-costas correram degraus abaixo. Vinçart foi o primeiro a perceber o truque e gritou, puxando Sikes de volta escadaria acima:
- Atenção, é armadilha!
Imediatamente outros três homens saíram ao mesmo tempo de lojas diferentes do perímetro. Um quarto no bar defronte sacou uma arma de dentro do cardápio. O tiroteio foi muito rápido, e poucos segundos depois os atacantes se dispersaram e desapareceram nas esquinas, pois tinham conseguido o que queriam. Sikes estava caído na escadaria, e algumas cachoeiras de sangue desciam os degraus. Praguejando, Vinçart deu instruções aos guarda-costas, e em meio às próprias imprecações escutou a voz apagada de Sikes:
- Chame ajuda.
- Já providenciei. Trarão uma ambulância.
- Não há tempo. Chame o anjo.
Vinçart não conseguia se lembrar da última vez em que ele ficara realmente perplexo, mas naquele momento ficou, mais do que quando o sócio recusara a oferta irrecusável, e sem saber o que fazer, gritou para qualquer parte o nome de Semjaza, ignorando a falta de lógica que era percebida por todos na rua.
O anjo apareceu como se não tivesse se afastado, e pousou nos degraus junto ao advogado e o gângster mortalmente ferido, mas não chamava a atenção; não tinha nenhuma luz.
- Esses problemas administrativos complicam muito a vida- disse Semjaza-, mas para a morte não se leva nem as complicações. Parece que agora o problema é bem mais aceitável que a solução, não é, Josef Sikes?
- Desgraçado, me ajude de uma vez. Não pode me dar vida eterna, mas pode me dar um pouco mais de vida. É alguma coisa, por enquanto. Vamos consentir logo aquele contrato. Se quiser que eu assine com sangue, pegue um pouco aí da poça e estamos combinados.
- Dada a urgência, prefiro dispensar a burocracia e o momento solene. Seja nossa testemunha, sr. Vinçart.
Vinçart não entendia o procedimento de pactos de alma. Sempre tivera dificuldades com procedimentos em toda a sua carreira jurídica. Instantes depois, Sikes levantou-se irritado e ajeitou o casaco, ignorando os furos e o sangue no tecido. Semjaza desceu os degraus em sua opulenta forma demoníaca.
- É, agora precisamos nos entender de um modo ou de outro- resmungou Sikes.- Sabe que temos muito trabalho pela frente, e eu não deixo meus sócios em paz quando há assuntos pendentes. Vou lhe explicar como a minha organização funciona, e quero resolver logo a divisão dos lucros. Podemos discutir isso no restaurante. Por falar em dinheiro, onde estão os guarda-costas? O conserto do meu casaco vai ser descontado do salário deles.
Sikes foi procurar os seguranças, deixando Vinçart e o demônio Semjaza sozinhos por um instante ao pé da escadaria, na rua deserta.
- Você não tinha ido embora, não é?- perguntou o advogado.- Estava observando o tempo todo?
- Certamente- respondeu Semjaza.
- E tinha visto aqueles homens, sem dúvida. Sabia que Sikes estava para sofrer um atentado, e não ajudou, nem avisou. Esperava assim conseguir o contrato para se tornar demônio?
- Acredito que eu me tornaria mesmo que Sikes não ficasse ferido. A atitude talvez fosse o suficiente.
- Sim, é uma desonestidade que impressiona até a mim- disse Vinçart com algo que poderia ser orgulho de sócio.- Muito curiosa para um anjo, mesmo um caído.
- Eu fui anjo apenas por um engano do Desígnio. Hoje pude experimentar a minha natureza finalmente, caso contrário não teria conseguido fazer o contrato me aproveitando da situação. Não tenho mais dúvidas quanto a isso. Resta procurar o meu valor mais alto.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Que reviravolta... quando tudo se encaminhava pro anjo, lá vem o demônio!

Mas agora vou ficar pensando em qual seria o valor mais alto pra um demônio. Só espero não ter pesadelos por causa disso. =)

Como sempre, adorei e quero mais.

3:21 AM  

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