Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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Local: Belém, Pará, Brazil

domingo, janeiro 23, 2011

Felino e Pablo (cont.) - 2

Como Céli não tinha nenhuma idéia em mente, foi convidado à casa de Pablo, que não era tão longe dali. Embora a ocasião de ser convidado à casa de outra pessoa lhe fosse muito estranha, Céli ainda achava melhor do que voltar para aquele instituto nojento.

Entraram por uma rua calma e não muito larga, que Céli não conhecia. A certa altura, ele começou a imaginar se teria sido uma boa idéia esgueirar-se para a casa dos outros em vez de tratar de seus próprios assuntos. Tinha coisas para ler, e sentia que tinha dívidas no estudo do helênico. Além disso, tinha o receio de entediar Pablo com sua companhia, depois de já tê-lo privado de jogar basquete com os amigos verdadeiros.

No final das contas, a casa parecia pequena à primeira vista, mas Céli achou bem confortável o interior, principalmente depois da caminhada sob o sol da tarde. Ao entrarem pela porta da cozinha, sentiu cheiro de peixe frito.

– Parece que o meu pai não está– disse Pablo–, mas deixou almoço. Quer?

– Um pouco, creio– murmurou Céli, enxugando o suor do rosto com a camisa.– Preciso lavar a cara.

– É, vamos deixar as coisas lá em cima.

Subiram para o quarto de Pablo no andar superior. Ao contrário de seu quarto mal projetado e empoeirado no instituto, Céli notou que entrava uma forte corrente de vento pela janela do quarto de Pablo. Os dois deixaram suas mochilas em um canto, e Céli ficou feliz por livrar-se do peso nas costas. Se estivesse em casa, teria tirado os sapatos e a camisa e se estendido longamente na cama, mas não tinha muita certeza de como se comportar em casa alheia, então apenas ficou parado olhando ao redor enquanto Pablo guardava os sapatos e procurava outra roupa no bagunçado guarda-roupas.

– Vai ficar de sapato aqui dentro, mano?– inquiriu Pablo.

– Sei lá. Deixo por aí?

– Junto com a mochila. E não ia se lavar?

– É.

Céli foi até a torneira do banheiro para limpar os braços e o rosto. Não precisava fechar a porta, mas o fez assim mesmo, e ficou durante algum tempo encarando a própria figura no espelho da parede. Em seu alojamento no instituto não havia espelho, e ele não sentia muito a falta de um, mas naquele momento ele se manteve contemplando seu reflexo para avaliar se estava parecendo muito ridículo; ou se pareceria quando saísse.

Pablo bateu na porta.

– Pretende passar o resto do dia aí dentro, mano? Pensei que felinos não gostassem de água.

– Detestam, ainda mais quando não tem toalha– disse Céli, porque não havia mesmo uma.

– Ih. Calma aí, vou trazer.

Céli abriu a porta e logo Pablo lhe deu uma toalha, mas não antes de rir de como ele ficava quando tão molhado, os cabelos bagunçados cobrindo-lhe o rosto.

– Não sei qual é a graça– resmungou Céli, enxugando-se e ajeitando os cabelos.

– Nem eu sei, mas não tem como evitar– riu Pablo, e em troca Céli atirou-lhe na cara a toalha molhada.– Agora dá o fora do meu banheiro, preciso de um banho. Pode ligar a televisão, se quiser.

Enquanto Pablo se fechou no banheiro, Céli, que não tinha vontade de assistir televisão, nem mesmo o hábito, foi até a janela para sentir o forte vento. Dali conseguia enxergar a quadra de basquete a certa distância, pois o bairro de Pablo tinha o relevo um pouco acima dos circunvizinhos; e como praticamente não havia prédios altos nas proximidades, devido à proibição de construí-los na região da orla fluvial, a circulação do vento era intensa. Ele sentia o ar correndo agradavelmente por dentro das roupas. Minutos depois, quando Pablo saiu do banho, Céli ainda estava absorto diante da janela, deixando a barulhenta corrente de vento levar seus pensamentos para longe.

– Que está fazendo aí, mano?

– Hum? Nada não. Aqui tem um vento bom, e tudo.

– Uma das poucas coisas boas de morar nessa parte da cidade. Precisa de um banho também? Posso te emprestar uma roupa.

– Nem preciso, ainda vou ficar um tempo na rua mais tarde. E também não sei se as tuas roupas serviriam em mim.

Provavelmente ficariam meio folgadas porque, como Pablo depois do banho ficou apenas de bermuda, Céli notou que ele tinha porte mais atlético do que o semi-humano percebera até então -- o que lhe trouxe de volta, por um momento, a conhecida sensação de inferioridade em relação ao amigo de músculos mais definidos. Mas Céli não podia esperar outra coisa, afinal não era ele próprio o esportista habitual, e não estava certo de querer tornar-se tão cedo.

– Devem ficar meio folgadas– opinou Pablo com a melhor das intenções.

– É– concordou o felino em seu resmungamento de costume.

Depois de almoçarem, os dois jogaram videogames de luta até perto do final da tarde, Céli conseguindo um placar bastante favorável. Então pelo menos era páreo para Pablo virtualmente, pensou ele.

– Vou admitir, mano, pensei que não soubesses jogar isso.

Parece que não se pode ser ruim em tudo, ocorreu a Céli responder, mas o que ele bem-humoradamente disse foi: – E eu pensei que tu soubesses.