Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

Minha foto
Nome:
Local: Belém, Pará, Brazil

quinta-feira, setembro 02, 2010

Madrugando

Céli não conseguia acertar muitas vezes. Passara metade da madrugada ou pouco mais tentando lançar a desgastada bola de basquete para dentro da cesta, e percebeu que durante o intervalo entre um e outro acerto daria tempo de executar mais de um concerto de Bach, de preferência o Brandeburguês n° 3, que era a música que ele tinha em mente naquele momento. Não podia culpar a luz rarefeita da quadra na rua mal iluminada e deserta, pois seus olhos de gato enxergavam bastante bem no escuro, e de qualquer forma o argumento não conseguiria justificar um desastroso arremesso de raiva e impaciência para cima de uma laje, tendo Céli precisado escalar uma árvore e pendurar-se pelas pernas em um galho para recuperar a bola.

É verdade que ele tinha mais prática em escalar do que em basquete. Não achava que tinha muita altura para jogar, mas, de fato, podia se considerar alto para sua idade de catorze anos, e até conseguia saltar melhor que a maioria de seus oponentes humanos, não tanto pelas características de felino, mas pela praxe dia e noite subindo muros. Como era bastante magro e não tinha músculos muito fortes, conforme se via por suas roupas folgadas e sem mangas, a velocidade era o que mais contava ao seu favor em qualquer forma de adversidade. Os calçados velhos não ajudavam a jogar tampouco, e a quadra estava molhada porque caía um fino chuvisco.

Em todo caso, seu moral não estava muito mais alto que o ângulo do sol no horizonte logo que começou a amanhecer. Ao se cansar daquilo, jogou com raiva a bola contra a cerca metálica e sentou-se no chão por alguns minutos, pensativo. O fato de não haver ninguém ali para observar o seu péssimo desempenho não lhe fazia a situação sentir menos humilhante.

Ele se levantou e olhou as horas no pequeno relógio de bolso. Quase na hora da aula, e ele ainda vadiando daquele jeito, chegaria atrasado, e ainda por cima molhado. Fazer o quê? Ele caminhou lentamente até onde jazia a bola de basquete, tomou-a nas mãos, e em uma última e desesperada tentativa, correu batendo a bola na direção da cesta, sentindo que desta vez conseguiria um arremesso e tanto.

Antes que fizesse isso, alguém lhe tomou a bola e arremessou dali mesmo, acertando direto na cesta.

Céli deixou escapar um suspiro resignado antes de encarar o motivo em pessoa de toda aquela prática durante a madrugada. Pablo parecia feliz aquela manhã -- como de costume, o que quase fazia Céli sentir-se envergonhado por parecer melancólico e irritado, por isso ele teve a decência de saudar com um relutante sorriso de congratulação o seu amigo humano.

– Ainda não aprendeu isso, mano?– riu Pablo ao apertar a mão do semi-humano.

– É– resmungou Céli.

Deixou-se abraçar por Pablo, embora sentisse vontade de derrubá-lo e dar-lhe uma meia dúzia de pontapés. Talvez o combate físico fosse a única coisa em que se equiparavam, pois Céli tinha a impressão de ser ele o segundo lugar em qualquer outra coisa que disputassem, fosse na quadra de basquete, no tabuleiro de xadrez e até nas notas do colégio. Não que Céli fosse muito competitivo, mas tudo isso somado ao fato de Pablo ser extremamente sociável, enquanto Céli era evitado e dificilmente conseguia manter uma conversa por ter modos inusitados, interesses pouco comuns e não ter o costume de falar muito mesmo, fazia com que algumas vezes ele visse como um rival aquele que era um de seus poucos amigos. Ademais, achava que, como Pablo tinha vários outros amigos além dele, nunca estaria no mesmo nível deles, a menos que mostrasse que poderia ser tão bom quanto ele em alguma coisa. Ainda não tinha chegado lá, porém.

– Então, vai ficar aqui e chegar atrasado de novo, ou quer ir comigo até o colégio?– perguntou o garoto humano.

Céli não sabia se estava atrasado ou não, pois a chegada triunfal de Pablo lhe fizera esquecer as horas, pelo que ele precisou verificar novamente o relógio de bolso.

– Fica parecendo algum tipo de lorde andando com esse relógio, mano.

– É porque roubei de um– disse Céli. Não era verdade, e Pablo sabia, mas Céli nunca tinha contado a origem daquele relógio caro, a única coisa de aparência remotamente aristocrática que ele possuía.

Em verdade, Céli não era preocupado com a aparência, pouco se importando de usar roupas folgadas até desbotarem de velhas, por vezes rasgadas aqui e ali. Por outro lado, não deixava de sentir certo tipo de incômodo ao constatar que Pablo, mesmo não sendo visto sempre por aí com roupas novas, ainda assim era muito mais apresentável que ele. Pelo menos era o que tudo indicava, já que Pablo sempre tinha alguém a lhe elogiar a aparência, enquanto Céli tinha uma lacuna nesse sentido.

Céli guardou a bola na mochila e os dois foram caminhando juntos para o colégio, Céli lacônico e com as mãos nos bolsos, chutando pedrinhas para dentro das valas e respondendo “hum... é” quando Pablo lhe comentava algo. Dois ou três quarteirões adiante, seu sentimento de rivalidade em relação ao amigo humano havia desaparecido quase inteiramente, e seu humor tornou-se mais ameno, começando a pelo menos responder com frases de mais de um período, no lugar de réplicas secas, quando passaram a conversar sobre filmes. Pouco mais em frente, Céli já estava enumerando motivos para Pablo assistir aos filmes de David Lean o quanto antes. Ao chegarem à rua do colégio, era Céli quem tinha um braço em torno do pescoço de Pablo e comentava animadamente Lawrence da Arábia.

3 Comentários:

Blogger Lucas Mesk disse...

que massa, bom te ver escrevendo de novo sobre o gato.

2:45 PM  
Blogger Lucas Mesk disse...

que massa, bom te ver escrevendo de novo sobre o gato.

2:45 PM  
Blogger Joice disse...

Nooooosa *-*
como você Escreve bem Yuri
Adoreei!

3:57 PM  

Postar um comentário

<< Voltar