Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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Local: Belém, Pará, Brazil

sábado, outubro 20, 2007

Dia da ira (I)

Continuação do "Oferta irrecusável", e tudo.
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O réquiem de Giuseppe Verdi fazia os vidros do quarto vibrarem em ressonância com o inquietante Dies irae, mas o homem deitado na cama, em trajes eclesiásticos, parecia muito relaxado, mãos cruzadas como um defunto, olhando o teto da ampla câmara, esperando um visitante. De vez em quando olhava na direção da grande janela em busca de alguma figura voadora passando.
Antes de chegar, porém, no Mors stupebit, ele se levantou e desligou o rádio. O silêncio absoluto durou até a porta se abrir e a figura demoníaca segurando uma espada entrar na câmara mal iluminada do arcebispo.
- Bem vindo à Catedral da Santa Sé- disse o homem.- Mas não se apresse em me matar, Semjaza. Eu o aguardei o dia todo, garanti que a catedral ficasse vazia, e pensei muito sobre como poderíamos chegar a um acordo, portanto você deve me escutar. Pode me dar algum tempo antes de cumprir a sua missão?
- Um quarto de hora, D. Rossini- respondeu o demônio fechando a porta atrás de si.
- Deve bastar. Então, o velho Sikes continua irritado comigo por eu haver tentado matá-lo? Não sei por que tanto ressentimento, ele perdoou muitos dos que tentaram mandá-lo para S. Pedro desde que ele era menor de idade. E veja bem, o meu caso foi puramente uma questão de negócio, afinal somos concorrentes, mas podemos chegar a uma resolução financeira, sem ressentimento nenhum. E é graças a minha, por assim dizer, intervenção-- talvez por uma Providência--, que você conseguiu fazer com ele o notável contrato, e ficou em tão boa forma. Não pode mostrar um pouco de gratidão?
- Não sei- disse Semjaza.- Para agradecer, eu lhe daria tempo para se reconciliar com o seu odioso deus e renunciar a seus incontáveis pecados, mas um quarto de hora não seria tempo suficiente, e eu não quero passar o resto da eternidade aqui até você terminar. Penso que não tem necessidade, mesmo.
- E o que pretende fazer depois de me matar? Procurar uma mulher, para lembrar os dias de antigamente?
- É uma boa idéia até, mas não faço questão de lembrar nada. E se você falar nesse assunto outra vez, vou adiantar os minutos que faltam.
- Eu conheço o seu passado- prosseguiu D. Rossini-, e de fontes mais confiáveis que textos apócrifos ou teorias inúteis de teólogos ociosos. Para falar a verdade, sei tanto sobre você que poderia escrever um imenso volume a respeito. Aliás, eu já fiz muitos rascunhos, alguns bastante compridos, e os incluí no meu espólio. Sabia que estou doente?- O demônio não respondeu, então o arcebispo retomou:- O importante é que, se eu morrer, alguns documentos muito interessantes, cheios de curiosidades, vão ser publicados sobre você em um ensaio póstumo. Eu os tenho escrito nesses últimos meses, enquanto você e Sikes me procuravam pelo mundo todo. Ele não pode ter pensado que eu não faria nenhum movimento...
- Está blefando- disse Semjaza com frieza.
- Um de nós está, e se me matar descobrirá qual. Se não me matar, ainda penso em fazer-lhe chantagem, talvez também a Sikes, se conseguir material suficiente. Vamos, você não é um mero botão daquele bandido, você também tem espírito negocial, então em vez de se irar comigo pense nas possibilidades. Você rejeita seu passado e não suportará se eu o desenterrar. Se você tiver uma crise moral, que poderá acontecer? Isso influenciaria em seu contrato? Caso sim, eu posso fazer Sikes aceitar os meus termos. Mentir não é um dos meus vícios, é claro, e quero que sejamos inteiramente francos um com o outro. Por que não me conta o que está pensando neste exato momento? Sem termos chulos, de preferência.
- O que quer, exatamente?- perguntou Semjaza com voz indefinível.
- Primeiro, tirar satisfação por você e seu sócio terem pensado que sou estúpido; e depois, aproveitar ao máximo a extorsão que vou fazer. Meus objetivos são simples, mas vai ser muito divertido. Vamos procurar o Sikes e falar com ele a respeito?