Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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quarta-feira, janeiro 19, 2011

Felino e Pablo (cont.)

Se havia alguma coisa na qual Céli era pior do que em basquete, era matemática. Por isso, na altura em que definitivamente desistiu de tentar acompanhar a aula de logaritmos, começou a rabiscar em seu caderno, tentando desenhar algo. Não que fosse muito bom nisso, também.

Primeiro tentou desenhar um zepelim, e não teve sucesso. Riscou completamente o desenho e virou para uma página em branco. Sem inspiração para tentar outro péssimo rabisco, tentou prestar atenção à aula. Logaritmo? Lógos, a língua helênica. Voltou-se para o caderno e garranchou λóγος na página em branco. Sua caligrafia não era lá muito bonita nem no alfabeto helênico, verdade seja dita. Não obstante, ele debruçou-se e continuou a rabiscar tediosamente: ‘Eν ’αρχñ ’ñν ‘o λóγος. Até que não ficou mal. Animou-se dessa forma a continuar escrevinhando, καì ‘o λóγος ’ñν πρòς τòν... e acabou encontrando um obstáculo.

– Céli! Por que não está prestando atenção?– chamou de longe a voz da professora, que estava logo diante da mesa de Céli.

– Estou escutando, e tudo– arrastou o garoto preguiçosamente.

– Tem certeza? Então qual foi a última coisa que eu disse?

– Estava dizendo que a origem do termo são os helênicos lógos e ’arithmós.

– Eu disse isso há vinte minutos!

– É? Que coisa. Então isso prova de uma vez por todas que o tempo é mesmo relativo.

Graças ao comentário, acabou ficando de castigo depois da aula, mas como a professora ensinava também física, acertou as contas fazendo-o estudar a teoria da relatividade em vez de logaritmos. No entanto, não demorou muito e ele começou a divagar outra vez, pois o exemplo dos trens usado por Einstein em seu texto para demonstrar o princípio da simultaneidade fez Céli voltar o pensamento para os trens de David Lean. Tentou rabiscar um trem atravessando uma ponte sobre um rio. Lógos. Einstein não pensava em palavras, e Céli não conseguia segui-lo muito bem na abstração.

– Está bem, Céli, já pode ir– anunciou a professora algum tempo depois, enquanto guardava o próprio material para ir embora.

– Ir aonde? Não tenho o que fazer lá fora mesmo. Além disso, gostei desse artigo. Agora que comecei a ler, tenho que terminar.

– Pode levar o livro, se quiser, desde que devolva na próxima aula. Aproveite e estude os outros físicos também.

Céli ainda teria muitos outros físicos para estudar pelo resto do ano, de qualquer forma... Einstein, Zweistein, Dreistein e os demais. Klasse, einfach wunderbar, ele pensou. Aceitou a proposta de levar o livro emprestado, mas era verdade que não tinha muita vontade de sair da sala silenciosa e vazia para um pátio cheio de alunos. Se tivesse saído no horário normal teria a esperança de encontrar Pablo em algum lugar lá fora, mas àquela altura ele provavelmente já teria ido. Sem escolha, guardou o livro e o caderno na mochila e saiu da sala para o barulhento corredor. Não sentia vontade de almoçar, muito menos de voltar para o instituto e passar o resto do dia fechado em seu quarto. Por outro lado, não tinha nenhum pretexto para ficar na rua. Foi tediosamente arrastando os pés até a saída do colégio.

***

Para sua surpresa, encontrou Pablo esperando-o na rua. Disfarçou com um indiferente aperto de mão o quanto ficou feliz em vê-lo.

– Ficou preso depois da aula, mano? O que fez agora?

– Merda nenhuma, só provei a teoria da relatividade à professora Simplícia. Hoje em dia isso dá meia hora de castigo em vez de um Nobel. E tu, hun? Pensei que já tivesses ido faz tempo.

– Nada, resolvi esperar. Ainda quer jogar?

– Contigo? Depois daquele dia, não sei, não. Além do mais, deves ter visto que eu não acerto nem jogando sozinho.

– Deixa disso, eu ensino. Não vai ter nada a fazer pelo resto do dia, vai?

– É– resmungou Céli, e aceitou.

Eram quase duas horas da tarde e fazia um tempo extremamente quente. Foram os dois caminhando de volta até a quadra, alguns quarteirões adiante, sem trocar muitas palavras. Não que Céli estivesse outra vez mal-humorado, apenas intrigado por Pablo tê-lo esperado, além de que ainda pensava no desastroso último jogo no qual cometera a suma imbecilidade de entrar.

Quando chegaram mais perto da quadra, Céli xingou ao perceber que estava ocupada, e como se não bastasse, os ocupantes eram o pessoal do Hector, um arruaceiro com quem Céli não tinha o mais cordial dos tratamentos.

– Saco. A última coisa que eu preciso é pisar numa quadra com aquele sujeito uma segunda vez na vida.

– Não vai me dizer que tem medo dele– cutucou Pablo para saber a reação.

– Eu já teria amassado a fuça daquele xorume mal disfarçado de gente, se ele não andasse sempre com mais cinco. Eu queria saber quanto ele é pago para me encher, porque não consigo imaginar que ele faça alguma coisa de graça com tanta dedicação.

– Ele enche todo mundo, não se preocupe com isso. Ele não é tão ruim quanto você pensa.

– Virou advogado dele, agora?– retrucou Céli com alguma hostilidade.

– Não, só quero dizer que você está exagerando um pouco, mano.

– Se fosse antes de ele ter atirado os meus livros na vala, ou de ter me trancado numa sala e jogado a chave no mato, eu também acharia exagero. Quando será que eu posso concluir que ele não presta, quando ele meter a minha cara num sanitário e der descarga? Porque ele tentou fazer isso semana passada, sabia?

– Eu não sabia de nenhuma dessas coisas. Por que não procurou a diretoria?

– Até parece. Se eu contasse, o mais provável seria o diretor abrir pessoalmente a porta do banheiro e estender um tapete vermelho na próxima tentativa do Heitor, porque é amigo do pai dele. Deve ter dinheiros, o pai desse cretino. Além disso, todo mundo ficaria do lado dele, como tu próprio agora.

– Como assim eu?

– É claro. Ele é teu amigo, suponho.

– Ele é, mas isso é diferente. Se eu soubesse que ele fazia essas coisas...

– Não tem importância. Na verdade não é da minha conta, eu nem te conheço faz tanto tempo quanto ele, imagino que tenhas os teus motivos para andar com aquilo. Mas acho que preciso dizer, vê se presta atenção em tipos como ele. É o seguinte...– Mas Céli intuiu que Pablo estava com mais vontade de jogar do que de escutar conselhos sobre que companhias ter, então decidiu pular para o encerramento do assunto:– Porcaria, esqueci o que eu ia dizer. Agora, vou dar um passeio por aí, então até amanhã.

Céli estendeu a mão, mas Pablo, em vez de apertá-la e despedir-se, começou a rir, acertou-lhe de leve um soco no ombro, foi andando, e disse quando Céli o seguiu:

– Perdi a vontade de jogar, sabe. Quer fazer alguma outra coisa?