Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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Local: Belém, Pará, Brazil

terça-feira, setembro 13, 2011

Proteus

[Pequeno exercício de tradução de algumas páginas do Proteus, terceiro capítulo do livro "Ulysses" de James Joyce. Nesse capítulo, narrado ora em terceira, ora em primeira pessoa, o personagem Stephen Dedalus caminha na praia pensando em diversos assuntos, e a narrativa segue o fluxo de seus pensamentos, geralmente sobre filosofia e arte, nem sempre tão compreensíveis e às vezes sem nexo aparente. Mas é um capítulo interessante, de qualquer forma. E com notas lá no final para parecer menos doido~]





Inelutável modalidade do visível: ao menos isso se não mais, pensado através de meus olhos. Assinaturas de todas as coisas estou aqui para ler, desova marítima e escombro marítimo, a maré aproximante, aquela bota enferrujada. Verde-fleuma, prateado-azul, ferrugem: sinais coloridos. Limites do diáfano. Mas ele acrescenta: em corpos. Então ele percebia os tais corpos antes dos tais coloridos. Como? Batendo a cabeça contra eles, claro. Vá com calma. Careca ele era e um milionário, maestro di color che sanno. Limite do diáfano dentro. Por que dentro? Diáfano, adiáfano. Se você pode colocar seus cinco dedos através dele, é um portão, se não, uma porta. Feche seus olhos e veja.

Stephen fechou os olhos para ouvir suas botas esmagarem escombros e conchas fissurando-se. Você está caminhando por isso de algum qualquer modo. Estou, um passo largo por vez. Um muito curto espaço de tempo através de muito curtos tempos de espaço. Cinco, seis: o nacheinander. Exatamente: e essa é a inelutável modalidade do audível. Abra seus olhos. Não. Jesus! Se eu caísse de um penhasco que sobrepende de sua base, caísse através do nebeneinander inelutavelmente. Estou prosseguindo bem no escuro. Minha espada de pó balança ao meu lado. Tateie com ela: eles tateiam. Meus dois pés nas botas dele estão no final da perna dele, nebeneinander. Soa sólido: feita pela marreta de Los Demiurgos. Estou caminhando para dentro da eternidade ao longo da praia de Sandymont? Quebra, craque, crique, crique. Dinheiro do mar selvagem. Dominie Deasy conhece-as todas.

Não virás a Sandymount,
Madeline a égua?

Ritmo começa, você vê. Eu ouço. Um tetrâmetro cataléctico de iambos marchando. Não, a galope: delineiem a égua.

Abra seus olhos agora. Abrirei. Um momento. Tudo desapareceu desde então? Se eu abrir e ficar para sempre no negro adiáfano. Basta! Verei se posso ver.

Veja agora. Eis todo o tempo sem você: e sempre será, mundo sem fim.

Elas vieram descendo os degraus do terraço de Leahy prudentemente, Frauenzimmer: e descendo a inclinante margem flacidamente seus pés desajeitados afundando na areia sedimentada. Como eu, como Algy, descendo para nossa poderosa mãe. A número um balançava pesadamente a sua bolsa de parteira, a sombrinha da outra fincada na praia. Vindo das liberdades, de folga pelo resto do dia. A Sra. Florence MacCabe, supérstite do falecido Patk MacCabe, profundamente lamentado, de Bride Street. Uma das de sua irmandade puxou-me guinchando para a vida. Criação a partir do nada. O que ela tem na bolsa? Um aborto com um cordão umbilical pendurado, acolhido numa gaze rosada. Os cordões de todo elo de volta, cabo fibritrançante de toda carne. É por isso que os monges místicos. Sereis como deuses? Olhai dentro de seus onfalos. Alô. Aqui é Kinch. Ligue-me com Edenville. Aleph, alpha: zero, zero, um.

Esposa e parceira ajudante de Adam Kadmon: Heva, nua Eva. Ela não tinha umbigo. Olhe. Ventre sem defeito, protuberando grande, um broquel de velino esticado, não, trigo alvimontoado, oriente e imortal, situando-se de sempiterno em sempiterno. Ventre de pecado.

Ventrado em escuridão de pecado eu fui também, feito não criado. Por eles, o homem com minha voz e meus olhos e uma mulher-fantasma com cinzas no hálito. Eles se engancharam e dividiram, cumpriram a vontade do acasalador. Desde antes dos tempos Ele me quis e que não me queira afastar agora nem jamais. Uma lex aeterna permanece junto a ele. É essa então a divina substância na qual o Pai e o Filho são consubstanciais? Onde está o pobre caro Ário para tentar conclusões? Guerreando por toda a vida na contransmagnificandexplosãojudaicatancialidade. Heresiarca mal-horoscopizado. Num lavabo grego ele respirou seu último respiro: eutanásia. Com mitra de gemas e com báculo, assentado sobre seu trono, viúvo de uma cátedra viúva, com o omofório rijo, com a popa coagulada.

Ares romperam ao seu redor, ares cortantes e ávidos. Elas estão vindo, ondas. Os cavalos-marinhos de crina branca, mordendo as rédeas de vento cintilante, os corcéis de Mananaan.

Não devo esquecer a carta dele para a imprensa. E depois? O Navio, meia dúzia. A propósito, vá com calma com aquele dinheiro como um bom jovem imbecil. Sim, eu devo.

Seu passo afrouxou. Aqui. Vou para a casa da tia Sara ou não? A voz do meu pai consubstancial. Viu alguma coisa do seu irmão artista Stephen ultimamente? Não? Ele não está mesmo no terraço de Strasburg com sua tia Sally? Ele não podia voar um pouco mais alto que aquilo, hein? E e e e nos diga, Stephen, como está o tio Si? Ó Deus pranteante, as coisas em que me meti. Us meninos lá em cima nu palheiro. O pequeno contador bêbado e seu irmão, o tocador de corneta. Gondoleiros altamente respeitáveis. E o Walter de olho oblíquo dizendo senhor ao pai, nada menos. Senhor. Sim, senhor. Não, senhor. Jesus chorou: e pudera, por Cristo.

Puxo a campainha chiante do chalé deles com persianas fechadas: e espero. Eles me tomam por um pardo, espiam de um cunhal vantajoso.

– É Stephen, senhor.

– Deixe-o entrar. Deixe Stephen entrar.

Um ferrolho afastado e Walter me dá as boas-vindas.

– Pensamos que era outra pessoa.

Em sua larga cama tio Richie, entre travesseiros e lençóis, estende sobre o montículo de seu joelho um robusto antebraço. Torso limpo. Ele lavou a metade de cima.

– Dia, sobrinho.

Ele deixa de lado a caderneta portátil em que esboça as contas de custas para a apreciação de Mestre Goff e Mestre Shapland Tandy, preenchendo consentimentos e buscas comuns e um mandado de Duces Tecum. Uma moldura de carvalho fóssil sobre sua cabeça calva: o Requiescat de Wilde. O zumbido de seu assovio extraviante traz Walter de volta.

– Sim, senhor?

– Malte para Richie e Stephen, diga à mãe. Cadê ela?

– Banhando Crissie, senhor.

A parceirinha de leito do papai. Torrão de amor.

– Não, tio Richie...

– Chame de Richie. Maldita seja sua água mineral. Ela diminui. Uísque!

– Tio Riche, realmente...

– Sente-se, ou pelo diabo, vou derrubá-lo.

Walter estreita os olhos em vão em busca de uma cadeira.

– Ele não tem onde sentar, senhor.

– Ele não tem onde pôr, seu cara de careta. Traga a nossa cadeira de Chippendale. Vai querer uma mordida de alguma coisa? Nada de suas besteirinhas aqui; uma riqueza de toucinho frito com arenque? Certeza? Tanto melhor. Não temos nada em casa além de pílulas contra dores nas costas.

All’erta!


Ele zumbe compassos da ária de sortita de Ferrando. O maior número, Stephen, na ópera inteira. Escute.

Seu assovio melodioso soa outra vez, otimamente sombreado, com corredeiras do ar, seus punhos megatamboreando sobre seus joelhos almofadados.

O vento está mais doce.


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NOTAS

- "maestro di color che sanno" (mestre daqueles que sabem): Referência a Aristóteles, conforme descrito por Dante no Canto IV da Comédia. O primeiro parágrafo trata das teorias dos sentidos.

-"Se você pode colocar seus cinco dedos através dele, é um portão, se não, uma porta": Paródia de uma definição de Samuel Johnson no Dicionário da Língua Inglesa -- "Porta é usado para casa, e portões para cidades e edifícios públicos, exceto em caso de licença poética."

- "Meus dois pés nas botas dele estão no final da perna dele": dele = Buck Mulligan, a quem pertenciam as botas, que ficaram com Stephen depois que Mulligan jogou fora.

- "Los Demiurgos. Estou caminhando para dentro da eternidade": Referência à obra de William Blake, na qual a entidade Los personifica a força criadora da imaginação.

- "Dinheiro do mar selvagem": conchas. Shells era uma gíria para dinheiro.

- "ares cortantes e ávidos": nipping and eager airs, expressão shakesperiana usada por Horácio enquanto vigia à espera da aparição do fantasma do pai de Hamlet.

-"espiam de um cunhal vantajoso": coign of vantage, outra expressão usada por Shakespeare, na cena em que Duncan e Banquo se aproximam do castelo de Macbeth.

sexta-feira, maio 13, 2011

"Slides de Lanterna" Felinos

Céli se escondendo embaixo da arquibancada de madeira no ginásio da escola, para ler romances longos durante a aula de educação física. Algumas vezes o professor o surpreendia em seu esconderijo e o fazia correr em torno da quadra até o final da aula, mas ele não se importava, desde que não tivesse de jogar futebol com os outros garotos. Correr em torno da quadra era consideravelmente melhor do que correr de um lado para o outro fingindo jogar.
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A professora Simplícia não se incomodava que os alunos fossem terrivelmente ruins em física, mas realmente pressionava aqueles que fossem ruins em matemática. "É uma questão de pureza, a matemática é a ciência mais pura de todas", ela costumava dizer sobre a diferença. "Deve ser por isso que as aulas dela de matemática parecem um campo nazista", pensou Céli. Ele gostava das aulas dela de física, porém.
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Céli sentado no ginásio, fingindo ler Der Tod in Venedig enquanto espera a chuva passar, mas na verdade observando Pablo jogar basquete sozinho. Eles nunca se falaram antes, e Céli estava reunindo coragem para entrar na quadra e pedir para jogar também.
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Céli e seu amigo humano helênico Coden no topo de uma montanha. "Xenofonte passou por esse mesmo lugar, em tempos remotos", disse Coden respeitosamente. Dali eles podiam enxergar o mar. Céli avançou e gritou "Thálassa! Thálassa!" apenas para saber como era a sensação.
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No juizado da infância e da juventude, depois de ser pego pichando um prédio, Céli assinou o termo de ocorrência com "SPx". O juiz pediu ao secretário que imprimisse outra cópia e disse a Céli austeramente: "Desta vez assine com o seu nome, não com sua marca de gangue." Céli ficou ultrajado: "Essa porra é a minha rubrica. Por que a assistente social, o secretário e tu mesmo podem rubricar e eu não? Tenho um nome complicado e uma caligrafia horrível, sabe..."

segunda-feira, abril 11, 2011

Soneto

É penitente a febre com que escrevo
Na madrugada insone de euforia.
Queimando a superfície em letra esguia
O punho corre no papel longevo.

Palavra após palavra forma um trevo
Cruzando alma inflamada e mente fria,
Bravo furor e plácida harmonia,
O que devo escrever e o que não devo.

Procuro imaginar o som do vento.
Caminha o tempo relutante e lento
Enquanto em devaneio fico imerso.

Suaves são a noite e o pensamento
No abismo de silêncio onde eu tento
Criar das próprias mãos outro universo.

domingo, janeiro 23, 2011

Felino e Pablo (cont.) - 2

Como Céli não tinha nenhuma idéia em mente, foi convidado à casa de Pablo, que não era tão longe dali. Embora a ocasião de ser convidado à casa de outra pessoa lhe fosse muito estranha, Céli ainda achava melhor do que voltar para aquele instituto nojento.

Entraram por uma rua calma e não muito larga, que Céli não conhecia. A certa altura, ele começou a imaginar se teria sido uma boa idéia esgueirar-se para a casa dos outros em vez de tratar de seus próprios assuntos. Tinha coisas para ler, e sentia que tinha dívidas no estudo do helênico. Além disso, tinha o receio de entediar Pablo com sua companhia, depois de já tê-lo privado de jogar basquete com os amigos verdadeiros.

No final das contas, a casa parecia pequena à primeira vista, mas Céli achou bem confortável o interior, principalmente depois da caminhada sob o sol da tarde. Ao entrarem pela porta da cozinha, sentiu cheiro de peixe frito.

– Parece que o meu pai não está– disse Pablo–, mas deixou almoço. Quer?

– Um pouco, creio– murmurou Céli, enxugando o suor do rosto com a camisa.– Preciso lavar a cara.

– É, vamos deixar as coisas lá em cima.

Subiram para o quarto de Pablo no andar superior. Ao contrário de seu quarto mal projetado e empoeirado no instituto, Céli notou que entrava uma forte corrente de vento pela janela do quarto de Pablo. Os dois deixaram suas mochilas em um canto, e Céli ficou feliz por livrar-se do peso nas costas. Se estivesse em casa, teria tirado os sapatos e a camisa e se estendido longamente na cama, mas não tinha muita certeza de como se comportar em casa alheia, então apenas ficou parado olhando ao redor enquanto Pablo guardava os sapatos e procurava outra roupa no bagunçado guarda-roupas.

– Vai ficar de sapato aqui dentro, mano?– inquiriu Pablo.

– Sei lá. Deixo por aí?

– Junto com a mochila. E não ia se lavar?

– É.

Céli foi até a torneira do banheiro para limpar os braços e o rosto. Não precisava fechar a porta, mas o fez assim mesmo, e ficou durante algum tempo encarando a própria figura no espelho da parede. Em seu alojamento no instituto não havia espelho, e ele não sentia muito a falta de um, mas naquele momento ele se manteve contemplando seu reflexo para avaliar se estava parecendo muito ridículo; ou se pareceria quando saísse.

Pablo bateu na porta.

– Pretende passar o resto do dia aí dentro, mano? Pensei que felinos não gostassem de água.

– Detestam, ainda mais quando não tem toalha– disse Céli, porque não havia mesmo uma.

– Ih. Calma aí, vou trazer.

Céli abriu a porta e logo Pablo lhe deu uma toalha, mas não antes de rir de como ele ficava quando tão molhado, os cabelos bagunçados cobrindo-lhe o rosto.

– Não sei qual é a graça– resmungou Céli, enxugando-se e ajeitando os cabelos.

– Nem eu sei, mas não tem como evitar– riu Pablo, e em troca Céli atirou-lhe na cara a toalha molhada.– Agora dá o fora do meu banheiro, preciso de um banho. Pode ligar a televisão, se quiser.

Enquanto Pablo se fechou no banheiro, Céli, que não tinha vontade de assistir televisão, nem mesmo o hábito, foi até a janela para sentir o forte vento. Dali conseguia enxergar a quadra de basquete a certa distância, pois o bairro de Pablo tinha o relevo um pouco acima dos circunvizinhos; e como praticamente não havia prédios altos nas proximidades, devido à proibição de construí-los na região da orla fluvial, a circulação do vento era intensa. Ele sentia o ar correndo agradavelmente por dentro das roupas. Minutos depois, quando Pablo saiu do banho, Céli ainda estava absorto diante da janela, deixando a barulhenta corrente de vento levar seus pensamentos para longe.

– Que está fazendo aí, mano?

– Hum? Nada não. Aqui tem um vento bom, e tudo.

– Uma das poucas coisas boas de morar nessa parte da cidade. Precisa de um banho também? Posso te emprestar uma roupa.

– Nem preciso, ainda vou ficar um tempo na rua mais tarde. E também não sei se as tuas roupas serviriam em mim.

Provavelmente ficariam meio folgadas porque, como Pablo depois do banho ficou apenas de bermuda, Céli notou que ele tinha porte mais atlético do que o semi-humano percebera até então -- o que lhe trouxe de volta, por um momento, a conhecida sensação de inferioridade em relação ao amigo de músculos mais definidos. Mas Céli não podia esperar outra coisa, afinal não era ele próprio o esportista habitual, e não estava certo de querer tornar-se tão cedo.

– Devem ficar meio folgadas– opinou Pablo com a melhor das intenções.

– É– concordou o felino em seu resmungamento de costume.

Depois de almoçarem, os dois jogaram videogames de luta até perto do final da tarde, Céli conseguindo um placar bastante favorável. Então pelo menos era páreo para Pablo virtualmente, pensou ele.

– Vou admitir, mano, pensei que não soubesses jogar isso.

Parece que não se pode ser ruim em tudo, ocorreu a Céli responder, mas o que ele bem-humoradamente disse foi: – E eu pensei que tu soubesses.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Felino e Pablo (cont.)

Se havia alguma coisa na qual Céli era pior do que em basquete, era matemática. Por isso, na altura em que definitivamente desistiu de tentar acompanhar a aula de logaritmos, começou a rabiscar em seu caderno, tentando desenhar algo. Não que fosse muito bom nisso, também.

Primeiro tentou desenhar um zepelim, e não teve sucesso. Riscou completamente o desenho e virou para uma página em branco. Sem inspiração para tentar outro péssimo rabisco, tentou prestar atenção à aula. Logaritmo? Lógos, a língua helênica. Voltou-se para o caderno e garranchou λóγος na página em branco. Sua caligrafia não era lá muito bonita nem no alfabeto helênico, verdade seja dita. Não obstante, ele debruçou-se e continuou a rabiscar tediosamente: ‘Eν ’αρχñ ’ñν ‘o λóγος. Até que não ficou mal. Animou-se dessa forma a continuar escrevinhando, καì ‘o λóγος ’ñν πρòς τòν... e acabou encontrando um obstáculo.

– Céli! Por que não está prestando atenção?– chamou de longe a voz da professora, que estava logo diante da mesa de Céli.

– Estou escutando, e tudo– arrastou o garoto preguiçosamente.

– Tem certeza? Então qual foi a última coisa que eu disse?

– Estava dizendo que a origem do termo são os helênicos lógos e ’arithmós.

– Eu disse isso há vinte minutos!

– É? Que coisa. Então isso prova de uma vez por todas que o tempo é mesmo relativo.

Graças ao comentário, acabou ficando de castigo depois da aula, mas como a professora ensinava também física, acertou as contas fazendo-o estudar a teoria da relatividade em vez de logaritmos. No entanto, não demorou muito e ele começou a divagar outra vez, pois o exemplo dos trens usado por Einstein em seu texto para demonstrar o princípio da simultaneidade fez Céli voltar o pensamento para os trens de David Lean. Tentou rabiscar um trem atravessando uma ponte sobre um rio. Lógos. Einstein não pensava em palavras, e Céli não conseguia segui-lo muito bem na abstração.

– Está bem, Céli, já pode ir– anunciou a professora algum tempo depois, enquanto guardava o próprio material para ir embora.

– Ir aonde? Não tenho o que fazer lá fora mesmo. Além disso, gostei desse artigo. Agora que comecei a ler, tenho que terminar.

– Pode levar o livro, se quiser, desde que devolva na próxima aula. Aproveite e estude os outros físicos também.

Céli ainda teria muitos outros físicos para estudar pelo resto do ano, de qualquer forma... Einstein, Zweistein, Dreistein e os demais. Klasse, einfach wunderbar, ele pensou. Aceitou a proposta de levar o livro emprestado, mas era verdade que não tinha muita vontade de sair da sala silenciosa e vazia para um pátio cheio de alunos. Se tivesse saído no horário normal teria a esperança de encontrar Pablo em algum lugar lá fora, mas àquela altura ele provavelmente já teria ido. Sem escolha, guardou o livro e o caderno na mochila e saiu da sala para o barulhento corredor. Não sentia vontade de almoçar, muito menos de voltar para o instituto e passar o resto do dia fechado em seu quarto. Por outro lado, não tinha nenhum pretexto para ficar na rua. Foi tediosamente arrastando os pés até a saída do colégio.

***

Para sua surpresa, encontrou Pablo esperando-o na rua. Disfarçou com um indiferente aperto de mão o quanto ficou feliz em vê-lo.

– Ficou preso depois da aula, mano? O que fez agora?

– Merda nenhuma, só provei a teoria da relatividade à professora Simplícia. Hoje em dia isso dá meia hora de castigo em vez de um Nobel. E tu, hun? Pensei que já tivesses ido faz tempo.

– Nada, resolvi esperar. Ainda quer jogar?

– Contigo? Depois daquele dia, não sei, não. Além do mais, deves ter visto que eu não acerto nem jogando sozinho.

– Deixa disso, eu ensino. Não vai ter nada a fazer pelo resto do dia, vai?

– É– resmungou Céli, e aceitou.

Eram quase duas horas da tarde e fazia um tempo extremamente quente. Foram os dois caminhando de volta até a quadra, alguns quarteirões adiante, sem trocar muitas palavras. Não que Céli estivesse outra vez mal-humorado, apenas intrigado por Pablo tê-lo esperado, além de que ainda pensava no desastroso último jogo no qual cometera a suma imbecilidade de entrar.

Quando chegaram mais perto da quadra, Céli xingou ao perceber que estava ocupada, e como se não bastasse, os ocupantes eram o pessoal do Hector, um arruaceiro com quem Céli não tinha o mais cordial dos tratamentos.

– Saco. A última coisa que eu preciso é pisar numa quadra com aquele sujeito uma segunda vez na vida.

– Não vai me dizer que tem medo dele– cutucou Pablo para saber a reação.

– Eu já teria amassado a fuça daquele xorume mal disfarçado de gente, se ele não andasse sempre com mais cinco. Eu queria saber quanto ele é pago para me encher, porque não consigo imaginar que ele faça alguma coisa de graça com tanta dedicação.

– Ele enche todo mundo, não se preocupe com isso. Ele não é tão ruim quanto você pensa.

– Virou advogado dele, agora?– retrucou Céli com alguma hostilidade.

– Não, só quero dizer que você está exagerando um pouco, mano.

– Se fosse antes de ele ter atirado os meus livros na vala, ou de ter me trancado numa sala e jogado a chave no mato, eu também acharia exagero. Quando será que eu posso concluir que ele não presta, quando ele meter a minha cara num sanitário e der descarga? Porque ele tentou fazer isso semana passada, sabia?

– Eu não sabia de nenhuma dessas coisas. Por que não procurou a diretoria?

– Até parece. Se eu contasse, o mais provável seria o diretor abrir pessoalmente a porta do banheiro e estender um tapete vermelho na próxima tentativa do Heitor, porque é amigo do pai dele. Deve ter dinheiros, o pai desse cretino. Além disso, todo mundo ficaria do lado dele, como tu próprio agora.

– Como assim eu?

– É claro. Ele é teu amigo, suponho.

– Ele é, mas isso é diferente. Se eu soubesse que ele fazia essas coisas...

– Não tem importância. Na verdade não é da minha conta, eu nem te conheço faz tanto tempo quanto ele, imagino que tenhas os teus motivos para andar com aquilo. Mas acho que preciso dizer, vê se presta atenção em tipos como ele. É o seguinte...– Mas Céli intuiu que Pablo estava com mais vontade de jogar do que de escutar conselhos sobre que companhias ter, então decidiu pular para o encerramento do assunto:– Porcaria, esqueci o que eu ia dizer. Agora, vou dar um passeio por aí, então até amanhã.

Céli estendeu a mão, mas Pablo, em vez de apertá-la e despedir-se, começou a rir, acertou-lhe de leve um soco no ombro, foi andando, e disse quando Céli o seguiu:

– Perdi a vontade de jogar, sabe. Quer fazer alguma outra coisa?

quarta-feira, janeiro 12, 2011

"Ministros da Magia"

Às vezes pode até parecer, mas um filme não fica pronto por mágica. Alguém precisa ter uma concepção de como serão as cenas, visualmente, emocionalmente, tecnicamente, e passá-las do roteiro para a realidade. O principal encarregado disso é o diretor.

Boa parte do público em geral não se importa com quem dirige os filmes. Talvez por não ter uma noção concreta de onde exatamente faria diferença se este ou aquele diretor fosse responsável pela obra.

Na série Harry Potter, que passou pelas mãos de quatro diretores diferentes, é bastante fácil verificar as particularidades de visão e estilo de cada um. Os sete livros da série compõem uma história criada por uma só autora, J. K. Rowling. Os filmes, por outro lado, são obras criadas diretamente por dezenas de pessoas, e indiretamente por centenas: o roteirista, o diretor de fotografia, o compositor de música, o departamento de arte, equipes de designers, maquiadores, figurinistas, técnicos de som e efeitos especiais, etc, etc. Se cada departamento tabalhasse nas cenas independentemente, e os atores dissessem suas falas como bem entendessem, o resultado seria uma enorme bagunça. É o diretor quem orienta com que forma ficará a obra de toda essa gente.

Cada um deles empregou sua estética, sua técnica e seu ritmo para recontar a história de J. K. Rowling no cinema. Vejamos como.


1. Chris Columbus

Ao começarem as negociações com a Warner Bros. para adaptar o maior best-seller dos últimos tempos, vários diretores conhecidos se propuseram a comandar a superprodução. Na lista de interessados estavam nomes como Terry Gilliam (Monty Python e o Cálice Sagrado), Jonathan Demme (O Silêncio dos Inocentes), Wolfgang Petersen (A História sem Fim), Tim Burton e Steven Spielberg, sendo esse último o mais cotado para dirigir Harry Potter e a Pedra Filosofal.

No entanto, divergências com os produtores e J. K. Rowling – que faziam questão de um elenco britânico e um filme bastante fiel ao original – tiraram Spielberg da questão, e quem assumiu o cargo foi o também americano e bem menos experiente Chris Columbus, o qual conheceu o livro através da filha e, em uma reunião com o produtor David Heyman e executivos da Warner, explicou-lhes a sua visão da história, convencendo-os a colocá-lo no cargo.

Por um lado, o currículo de Columbus, conhecido como diretor de filmes-família (sendo que seu maior hit havia sido Esqueceram de Mim, filme-família por excelência), não era um grande indício de que ele estaria à altura do desafio. Por outro, ele parecia condizer com uma aventura infantil como o primeiro Harry Potter, embora os temores de que ele pudesse infantilizar em excesso filme fossem justificados. Os pontos que mais contaram a favor de Columbus para ganhar a preferência da produção e de J.K. Rowling, entre tantos diretores, parecem ter sido o seu comprometimento em fazer um filme fiel ao original, e a sua habilidade em trabalhar com atores crianças.

No final das contas, a direção de Chris Columbus em A Pedra Filosofal atendeu bem às expectativas do público: a maior parte dos fãs da obra literária afirma que, de todos os diretores, Columbus foi o que mais pôs na tela exatamente aquilo que imaginaram ao ler o livro. Para a crítica, isso é o ponto forte e o ponto fraco do filme, pois ao mesmo tempo em que agrada o público-alvo, tanta fidelidade ao livro faz com que seja um filme sem surpresas.

Ora, Columbus preservou a fidelidade ao original desejada por Rowling, tentando manter o máximo possível de elementos do livro, sem desenvolver algum em particular como linha dramática, preocupando-se menos em condensar do que transpor o mais literalmente possível do livro tudo que coubesse em um filme de duração normal. Segundo Columbus, para caber o livro inteiro seriam necessárias quatro ou cinco horas.

Contentando-se com duas horas e meia mesmo, o diretor apresenta um passo-a-passo inicial no mundo bruxo de J. K. Rowling utilizando um visual limpo, com a fotografia calorosa e a trilha sonora ora melódica, ora vibrante (Columbus dizia ao compositor John Williams exatamente que emoção esperava que a música de cada cena tivesse), construindo um belo senso de deslumbramento e fantasia. Suas instruções ao departamento de arte foram no sentido de que Hogwarts parecesse um lugar que fora criado por magia e existisse desde sempre, e como resultado o ambiente tem um ar atemporal.

Columbus emprega planos bastante tradicionais de Hollywood, do enquadramento até a montagem as cenas têm um andamento estável, sem grandes variações de estilo e ritmo narrativo. O diretor não sobrecarrega as cenas com informações, evita mostrar muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, e emprega composições visuais com bastante objetividade: cada elemento que vemos na tela é auto-explicativo e conduz diretamente ao objetivo da cena. As atuações são contidas, sem excessos emocionais e adstritas ao tipo de cada personagem e sua função na história. É com essa objetividade que conhecemos Hogwarts e os personagens que ali vivem.

Em Harry Potter e a Câmara Secreta, cuja produção começou imediatamente após o encerramento de Pedra Filosofal, Chris Columbus segue como diretor e retoma o mesmo esquema. No segundo filme, embora tenha basicamente o mesmo corpo do primeiro, Columbus procura um tratamento diferente: cenas mais incisivas e com menos deslumbramento do que o filme anterior, alguns ângulos menos convencionais, como tomadas inclinadas, e movimentos de câmera mais livres e ágeis. Um motivo presumível de se usar mais câmera na mão do que no primeiro filme é que, segundo o diretor, tentou-se dar a impressão de um movimento de serpente, o que é evidenciado nos momentos em que Harry escuta a voz do basilisco e a câmera se esgueira nas paredes.

Com o crescimento dos personagens, Columbus não teve dúvida de que o segundo filme deveria ser mais sombrio, e pediu ao diretor de fotografia imagens mais escuras. Por isso, na tela não nos deparamos apenas com cenários pouco iluminados, como também cantos e extremidades escuras e entradas com aparência abissal. Até a água dentro da Câmara Secreta foi tingida de preto para favorecer essa impressão.

Tirando o fato de estar mais obscura, Hogwarts e os personagens que ali moram continuaram essencialmente na mesma. A concepção dos personagens e a forma de dirigir os atores se mantém, bem como os temas e o espírito da trilha sonora, além do encerramento ameno com a câmera se afastando para um plano geral do castelo. Mudanças essenciais vieram com o diretor do filme seguinte.


2. Alfonso Cuarón

Com a saída de Columbus, que embora continuando como produtor deixou vago o cargo de direção para dedicar mais tempo à família, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban foi entregue a um novo diretor. Uma escolha nem um pouco previsível para continuar um trabalho que começou com o estilo ordeiro e polido de Chris Columbus: ao contrário deste, o mexicano Alfonso Cuarón era conhecido por um filme adulto, E a Sua Mãe Também, com o qual recebeu a indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Original. Cuarón inicialmente recusou a proposta, mas voltou atrás após ler os livros de Rowling por insistência do amigo Guillermo del Toro. E ao contrário do que se espera em uma grande franquia, Cuarón teve ampla liberdade para imprimir certa marca autoral ao filme e se permitir amplas intervenções criativas. Não procurou fazer igual nem diferente do antecessor, apenas fazer o filme do seu jeito. Ele próprio disse em entrevista que filmar Prisioneiro foi como fazer um filme independente com um orçamento gigantesco.

A adaptação de Cuarón é menos literal que a de Columbus: Prisioneiro se afirma como filme, e não como suplemento do livro. Pela duração de “apenas” 142 minutos (sendo o filme mais curto que os antecessores), nota-se que Cuarón não pretendeu enfiar na montagem final o máximo possível de material, e sim o que importasse para a consistência daquele filme específico, ainda que respeitando as expressas restrições de Rowling quanto ao que poderia ou não ser incluso ou retirado de modo a afetar os próximos episódios, concentrando a história no ponto de vista de Harry e eliminando sem dó as diversas explicações acessórias e subtramas. Mesmo lamentando os cortes, o produtor David Heyman admite que essa decisão “ajudou a estabelecer uma estrutura mais cinematográfica”.

Em vez da magia acolhedora do diretor anterior, Cuarón opta por um tom mais excêntrico. Criaturas típicas de filmes de fantasia dão lugar a figuras mais familiares ao gênero horror. Por exemplo o barman d’O Caldeirão Furado, Tom, que no primeiro filme era um carismático velhinho, na visão de Cuarón virou uma espécie de Quasímodo, e surgiram seres grotescos como o carrasco deformado e as Cabeças Encolhidas. Hogwarts ganhou uma nova ambientação— e muito mais contornos: além de os terrenos serem mais cheios de declives, o visual do filme é repleto de curvas irregulares na arquitetura dos cenários e nos objetos de cena, além de muitos momentos com chuva e neblina, possivelmente para criar uma atmosfera abstrata (Cuarón elogiou o fato de o livro lidar com “conceitos abstratos”, como viagens no tempo) e por vezes inquietante, à maneira do estilo expressionista.

O próprio modo de filmar e editar diverge completamente dos filmes anteriores. Ao contrário da objetividade do primeiro diretor, Cuarón acrescenta momentos sem significado imediato, como as cenas aparentemente aleatórias de pássaros sendo despedaçados pelo Salgueiro Lutador-- e que só mais ao final do filme terão um sentido de estar ali. Além disso, no próprio set de filmagem Cuarón já tinha em mente a montagem do filme, por isso gravou menos tomadas, sendo todas mais longas e usando menos câmeras, em vez do procedimento de filmar de diversos ângulos e escolher na edição qual deles usar em cada momento.

A câmera raramente fica parada, e Cuarón usa movimentos inesperados, como os dois travellings para dentro do espelho na seqüência do bicho-papão, e aquele que acompanha Harry e Hermione para fora da enfermaria até o pátio exterior. O diretor compôs as cenas para tomadas abertas e usando lentes grande-angulares: primeiro, para evitar o uso genérico e sem objetivo do close-up (uso que ele critica nas produções de Hollywood), usando-o apenas quando acha relevante e, ainda assim, com a ressalva de mostrar a aproximação gradativa da câmera ao personagem ou objeto, em vez de instaurar o close-up na edição simplesmente cortando do plano aberto para o próximo (ressalte-se a elaborada transição de uma panorâmica do imenso salão principal, passando através de um coro de estudantes, até um plano médio de Dumbledore, na mesma tomada!); e segundo, para não perder a noção do que acontece em torno de Harry e manter em vista onde todos os personagens estão situados. Por isso, mesmo durante um close podemos nos dar conta da ação acontecendo ao redor.

As cores fortes dos primeiros filmes cedem lugar a uma fotografia com tonalidades mais frias, mais iluminações cruzadas e contrastes, dando um ar mais hostil e rústico. A trilha sonora de John Williams acompanha a mudança empregando temas menos melodiosos e mais variados, percorrendo do intimista ao grandiloquente, e até o irônico (característica ausente na música dos primeiros filmes), e destaque-se uso de instrumentos medievais que incorporam a atmosfera exótica do filme. O mundo dos bruxos na visão de Cuarón não denota maravilhamento, e ele trata a fantasia com humor, fazendo rápidas alternâncias entre momentos cômicos e sombrios, e de volta ao estado anterior, na mesma cena: a tensão é mais insinuada do que construída, e freqüentemente destruída como por gracejo; por exemplo, o momento em que Harry chega a um parque soturno, um cão preto espectral sai dos arbustos, e logo em seguida surge o Nôitubus Andante ao som de uma música amena, e se inicia uma sequência em que, embora Harry seja apresentado à figura do fugitivo Sirius Black, prevalece o aspecto cômico da viagem no Nôitibus. As atuações são mais livres e expansivas, sendo os personagens menos comportados, bem como o próprio figurino foi subvertido, deixando de lado o uniforme por trajes mais informais.

Por fim, em lugar de o filme terminar com o protagonista voando em direção ao horizonte com sua nova Firebolt, encerra com uma tomada bem fechada do rosto de Harry passando pela tela, sendo também a cena de encerramento mais diferente da série.


3. Mike Newell

Com a saída de Cuarón, que não se dispôs a trabalhar duas vezes seguidas em uma produção dessa escala, o escolhido para dirigir Harry Potter e o Cálice de Fogo foi Mike Newell, ganhador do BAFTA por “Quatro Casamentos e um Funeral”. O fato de ele ser o primeiro diretor inglês a trabalhar em um Harry Potter, além de ter ele próprio estudado em um internato, levantou expectativas entre os fãs e J.K. Rowling.

De fato, Newell enfatiza no filme a atmosfera de internato, à qual os diretores anteriores não haviam dado tanta atenção assim: ele mostra explicitamente os personagens em situações que nos filmes de Columbus não vinham ao caso, e que por Cuarón foram apenas sugeridas, no que diz respeito a interação dos personagens com o sexo oposto, com outros alunos e com os professores. Vemos pela primeira vez coisas tão comuns em colégios, como alunos formando círculo em torno de uma briga e conversando sobre garotas. Ao mesmo tempo essa característica contribui para o quato filme retornar, especialmente depois do ar inusitado e expressivo de O Prisioneiro de Azkaban, a um modelo tecnicamente mais convencional e artisticamente mais mundano.

A direção de Newell é mais parecida com a de Chris Columbus que com a de seu antecessor: segue a mesma estrutura de narrativa, usando planos e cortes ao mesmo estilo, embora de forma menos didática que o diretor dos primeiros filmes. Mas a concepção que Newell apresenta do mundo bruxo é o contrário da magia aurífera e onipresente de Columbus. A fotografia de Cálice de Fogo, feita por Roger Pratt, que trabalhou com Columbus em A Câmara Secreta, tem uma paleta de cores ainda mais fechada e com menos contraste que a de Prisioneiro, predominando ora alguns tons de cinza ou azul-escuro quase monocromáticos, ora um verde-limo desbotado, sendo visualmente mais escuro que os outros filmes. Nesse ambiente, a magia é inserida de uma forma mais cotidiana e menos extraordinária, diferentemente da abordagem deslumbrante de Columbus e a surrealista de Cuarón.

As composições são relativamente mais simples em comparação às de Cuarón, sendo menos amplas, muito menos estilizadas e mostrando menos coisas diversas acontecendo ao mesmo tempo, além de não acrescentar elementos visualmente excêntricos ou planejar transições surpreendentes. Enquanto o diretor de Prisioneiro valorizava o abstrato e o sugestivo, Newell se atém bastante ao concreto e ao explícito ao construir as cenas. Um dos planos mais recorrentes de Newell parece ser um tipo de retrato: vários personagens lado a lado, olhando na direção da tela.

À altura do quarto filme já tinha sido considerada a hipótese de dividir um mesmo livro em duas produções cinematográficas, por causa da extensão do livro, mas o diretor optou por fazer apenas um filme, escolhendo os pontos-chave do enredo e eliminando as sub-tramas, dano ao filme um foco. Ou melhor, dois— o ressurgimento do mal e a puberdade dos protagonistas. Newell dá igual importância às sequências sombrias, aos alívios cômicos e à interação dos personagens, os quais ele faz questão de relembrar que entraram na adolescência.

Na direção de atores, porém, Mike Newell destoa drasticamente não apenas da obra literária, como também dos filmes anteriores, e o resultado causa um estranhamento. É sabido que Newell leu o quarto livro “debaixo de chibatadas”, como ele mesmo declarou, o que explica por que neste filme os personagens têm alguns comportamentos inesperados, como um Dumbledore hiperativo e explosivo, um Voldemort espalhafatoso, um Sr. Crouch inseguro, Snape apelando a dar tabefes nos alunos (e eles achando graça disso), etc.


4. David Yates

Para o filme Harry Potter e a Ordem da Fênix foi escolhido como novo diretor o também inglês David Yates – que acabou ocupando o cargo pelo resto da série.

Yates vem, principalmente, da televisão: em 2003, dirigiu a aclamada série de thriller político Stage of Play, que lhe rendeu uma indicação ao BAFTA TV Award, e em 2005 foi nomeado ao Emmy Award pelo filme para televisão The Girl in the Cafe, com Bill Nighy. Nesse ano foi escolhido diretor do quinto Harry Potter, devido à admiração de David Heyman por seu trabalho na televisão, bem como do conteúdo político de Ordem da Fênix.

Com efeito, Yates tratou com prioridade o enfoque político de Ordem da Fênix. O diretor deu foco a determinados pontos-chave (a relação de Harry com Sirius, o regime educacional de Umbridge e a profecia) e eliminou todos os demais, fazendo do livro mais longo da série o filme mais curto.

Embora se trate de um filme de fantasia, estilisticamente Yates busca uma abordagem mais realista, filmando o mundo mágico de uma perspectiva que ele define como “social-realista” ao mostrar os personagens em conflito com as instituições do mundo bruxo, empregando a fotografia azulada suave e monocromática de Slawomir Idziak que pouco evoca um ambiente de magia. A impressão de realismo é amparada pelas diversas tomadas com câmera na mão, considerada uma das marcas do estilo de Yates.

Possivelmente é o diretor que mais procurou conferir através das atuações o elemento dramático dos filmes. É também Yates quem mais se aproveita da edição para contar a história, usando recortes em seqüências não-lineares, como aquela em que Umbridge inspeciona os professores, e resumindo informações em planos-relâmpago, como é o caso da pior lembrança de Snape, contada em cortes velozes.

Em Harry Potter e o Enigma do Príncipe, David Yates deixa totalmente de lado o plano de fundo político (por isso eliminando até mesmo a nomeação do novo ministro) e concentra o filme na interação dos personagens. Decidiu fazer o filme mais leve, com mais atenção ao aspecto da comédia romântica, dando-lhe o mesmo peso que os momentos sombrios. Desta vez, com o diretor de fotografia Bruno Delbonnel, afasta-se da abordagem realista e opta por um visual mais estilizado, com tomadas mais específicas (o que significa menos câmera na mão e composições visuais mais elaboradas) e cores mais contrastantes. Yates revela, ainda, a influência de um outro David que é um dos maiores cineastas britânicos, David Lean: a ambientação da seqüência em que Dumbledore encontra o jovem Tom Riddle em um obscuro orfanato evoca a abertura do filme “Oliver Twist” de Lean.

Por fim, a divisão de Harry Potter e as Relíquias da Morte em duas partes disponibilizou mais metragem para que Yates pudesse abarcar no filme quase todos os pontos mais importantes do livro. Também deu espaço para o diretor abdicar de sua edição corrida e manter longas cenas de exposição, como os personagens olhando para o horizonte e o monólogo de Rony ao voltar para o grupo. Por se tratar de um filme de estrada, em que Harry, Rony e Hermione passam grande parte do tempo viajando sozinhos, o foco narrativo de Yates, desta vez, foi o trio, razão pela qual as histórias paralelas de Rony e Hermione têm seu lugar na edição final. Por ser novamente um episódio com conteúdo político, Yates até certo ponto retoma o seu “social-realismo”, usando uma fotografia fria e austera, e ainda filmando uma perseguição na floresta com câmera na mão e sem trilha sonora. Outra característica de Yates é achar mais eficiente o silêncio no lugar de música nas cenas culminantes, como faz também no duelo de Dumbledore contra Voldemort no quinto filme, e no breve confronto de Harry e Snape no final do sexto.

Coube a David Yates o desfecho da série, com Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte II, atualmente em fase de pós-produção.

quinta-feira, setembro 02, 2010

Madrugando

Céli não conseguia acertar muitas vezes. Passara metade da madrugada ou pouco mais tentando lançar a desgastada bola de basquete para dentro da cesta, e percebeu que durante o intervalo entre um e outro acerto daria tempo de executar mais de um concerto de Bach, de preferência o Brandeburguês n° 3, que era a música que ele tinha em mente naquele momento. Não podia culpar a luz rarefeita da quadra na rua mal iluminada e deserta, pois seus olhos de gato enxergavam bastante bem no escuro, e de qualquer forma o argumento não conseguiria justificar um desastroso arremesso de raiva e impaciência para cima de uma laje, tendo Céli precisado escalar uma árvore e pendurar-se pelas pernas em um galho para recuperar a bola.

É verdade que ele tinha mais prática em escalar do que em basquete. Não achava que tinha muita altura para jogar, mas, de fato, podia se considerar alto para sua idade de catorze anos, e até conseguia saltar melhor que a maioria de seus oponentes humanos, não tanto pelas características de felino, mas pela praxe dia e noite subindo muros. Como era bastante magro e não tinha músculos muito fortes, conforme se via por suas roupas folgadas e sem mangas, a velocidade era o que mais contava ao seu favor em qualquer forma de adversidade. Os calçados velhos não ajudavam a jogar tampouco, e a quadra estava molhada porque caía um fino chuvisco.

Em todo caso, seu moral não estava muito mais alto que o ângulo do sol no horizonte logo que começou a amanhecer. Ao se cansar daquilo, jogou com raiva a bola contra a cerca metálica e sentou-se no chão por alguns minutos, pensativo. O fato de não haver ninguém ali para observar o seu péssimo desempenho não lhe fazia a situação sentir menos humilhante.

Ele se levantou e olhou as horas no pequeno relógio de bolso. Quase na hora da aula, e ele ainda vadiando daquele jeito, chegaria atrasado, e ainda por cima molhado. Fazer o quê? Ele caminhou lentamente até onde jazia a bola de basquete, tomou-a nas mãos, e em uma última e desesperada tentativa, correu batendo a bola na direção da cesta, sentindo que desta vez conseguiria um arremesso e tanto.

Antes que fizesse isso, alguém lhe tomou a bola e arremessou dali mesmo, acertando direto na cesta.

Céli deixou escapar um suspiro resignado antes de encarar o motivo em pessoa de toda aquela prática durante a madrugada. Pablo parecia feliz aquela manhã -- como de costume, o que quase fazia Céli sentir-se envergonhado por parecer melancólico e irritado, por isso ele teve a decência de saudar com um relutante sorriso de congratulação o seu amigo humano.

– Ainda não aprendeu isso, mano?– riu Pablo ao apertar a mão do semi-humano.

– É– resmungou Céli.

Deixou-se abraçar por Pablo, embora sentisse vontade de derrubá-lo e dar-lhe uma meia dúzia de pontapés. Talvez o combate físico fosse a única coisa em que se equiparavam, pois Céli tinha a impressão de ser ele o segundo lugar em qualquer outra coisa que disputassem, fosse na quadra de basquete, no tabuleiro de xadrez e até nas notas do colégio. Não que Céli fosse muito competitivo, mas tudo isso somado ao fato de Pablo ser extremamente sociável, enquanto Céli era evitado e dificilmente conseguia manter uma conversa por ter modos inusitados, interesses pouco comuns e não ter o costume de falar muito mesmo, fazia com que algumas vezes ele visse como um rival aquele que era um de seus poucos amigos. Ademais, achava que, como Pablo tinha vários outros amigos além dele, nunca estaria no mesmo nível deles, a menos que mostrasse que poderia ser tão bom quanto ele em alguma coisa. Ainda não tinha chegado lá, porém.

– Então, vai ficar aqui e chegar atrasado de novo, ou quer ir comigo até o colégio?– perguntou o garoto humano.

Céli não sabia se estava atrasado ou não, pois a chegada triunfal de Pablo lhe fizera esquecer as horas, pelo que ele precisou verificar novamente o relógio de bolso.

– Fica parecendo algum tipo de lorde andando com esse relógio, mano.

– É porque roubei de um– disse Céli. Não era verdade, e Pablo sabia, mas Céli nunca tinha contado a origem daquele relógio caro, a única coisa de aparência remotamente aristocrática que ele possuía.

Em verdade, Céli não era preocupado com a aparência, pouco se importando de usar roupas folgadas até desbotarem de velhas, por vezes rasgadas aqui e ali. Por outro lado, não deixava de sentir certo tipo de incômodo ao constatar que Pablo, mesmo não sendo visto sempre por aí com roupas novas, ainda assim era muito mais apresentável que ele. Pelo menos era o que tudo indicava, já que Pablo sempre tinha alguém a lhe elogiar a aparência, enquanto Céli tinha uma lacuna nesse sentido.

Céli guardou a bola na mochila e os dois foram caminhando juntos para o colégio, Céli lacônico e com as mãos nos bolsos, chutando pedrinhas para dentro das valas e respondendo “hum... é” quando Pablo lhe comentava algo. Dois ou três quarteirões adiante, seu sentimento de rivalidade em relação ao amigo humano havia desaparecido quase inteiramente, e seu humor tornou-se mais ameno, começando a pelo menos responder com frases de mais de um período, no lugar de réplicas secas, quando passaram a conversar sobre filmes. Pouco mais em frente, Céli já estava enumerando motivos para Pablo assistir aos filmes de David Lean o quanto antes. Ao chegarem à rua do colégio, era Céli quem tinha um braço em torno do pescoço de Pablo e comentava animadamente Lawrence da Arábia.

sábado, maio 08, 2010

Sobre a divisão de "Relíquias da Morte"

ONDE "HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE" DEVERIA SER DIVIDIDO

(Obviamente contém SPOILERS)



Muitos fãs da série Harry Potter esperavam, desde o quarto filme, "Harry Potter e o Cálice de Fogo", que a Warner Bros. produzisse dois filmes baseados em um mesmo livro, para evitar cortar o extenso material dos livros mais longos ao encaixá-los em um filme de duas horas e meia.

Finalmente, os produtores discutiram com efeito essa questão e o estúdio deu sinal verde para que o último episódio da série literária, "Harry Potter e as Relíquias da Morte", fosse adaptado como dois filmes, ou um filme em duas partes.

Os conceitos de se fazer dois filmes e fazer um filme em duas partes não são bem a mesma coisa. Na primeira hipótese, temos dois filmes relativamente independentes, cada qual com seu próprio enredo, estilo, ritmo e clímax. Na segunda suposição, temos o mesmo enredo dividido em dois filmes, caso em que o desdobramento introduzido na primeira parte deve chegar a uma conclusão na segunda parte – logo, a parte um termina amplamente sem conclusão.

A série Harry Potter, apesar de ser dividida em vários livros/filmes, é uma única história, na forma como a autora J. K. Rowling e vários fãs a vêem. Não obstante, cada livro/filme tem sua própria trama, sub-tramas, clímax e conclusão – mais ou menos aberta, com algumas questões não resolvidas, mas nunca um gancho explícito em uma situação deixada pendente para o próximo episódio.

Esse padrão pode ser quebrado se a divisão de "Harry Potter e as Relíquias da Morte" seguir a segunda lógica – um filme em duas partes, terminando a parte um em uma situação de "continua no próximo episódio".

Até onde se sabe, ainda não foi decidido onde a interseção das partes um e dois será feita. Provavelmente é um assunto de grande discussão entre diretor, produtor e executivos da Warner, que deve ser solucionada só depois de exibições de teste. De acordo com o produtor David Heyman, há três maiores possibilidades: a) após a conversa com Xenofílio Lovegood sobre as misteriosas Relíquias da Morte; b) o trio principal chegando à Mansão dos Malfoy após a captura; e c) o trio no Chalé das Conchas, depois do funeral de Dobby.

A primeira possibilidade não parece ser provável em absoluto, já que não deixaria nenhum grande momento de ação para o fim da Parte Um, e a perspectiva de acabar o filme logo quando é feita a primeira referência a seu título é, por si só, bastante obtusa e sem sentido. Seria como esperar o resto do filme depois do intervalo comercial e descobrir que ele na verdade já acabou. Mesmo que experimentassem essa opção, sem dúvida a audiência de teste iria massacrá-la imediatamente.

Então, a questão permanece entre as possibilidades "b", o gancho, e "c", o final triste.

O final em um gancho seria uma novidade na série. Ainda que o termo "Parte Um" depois do título principal advirta que o filme terá um final aberto (ou seja, nenhum final), pode-se imaginar como o público – em geral, bem como fãs – reagiria a encontrar o final da projeção no meio da ação. E pior ainda, no caso de quem leu o livro, sabendo que um dos momentos mais interessantes da série deveria vir logo depois daquilo.

Pode-se imaginar se este final para a Parte Um faria o imenso público sair do cinema sorrindo satisfeito e ansioso pela Parte Dois... ou simplesmente furioso porque a tela escureceu e o letreiro "Dirigido por David Yates" apareceu logo quando o filme estava alcançando o seu melhor ponto.

O sentido de um gancho é deixar o público ansioso pelo próximo episódio para saber o que acontece a seguir. Mas esse artifício pode ser um tiro no pé e se tornar simplesmente inepto e revoltante, se o gancho sacrifica um momento de intensidade culminante e não mantém nada além de um vazio no fim da sessão. Mesmo que um filme tenha um final sem conclusão, deve ser um final que valha a pena assistir.

Nesse caso, mesmo que o gancho em si funcione, a captura do trio na floresta por Fenrir Grayback não é lá um clímax. Mesmo que haja uma luta antes da captura, uma luta rápida contra alguns capangas não é particularmente um grande momento para gerar uma situação satisfatória de "continua".

A seqüência na Mansão dos Malfoy, por outro lado, tem o imenso potencial de ser um enorme clímax. Primeiro, é uma das partes mais empolgantes da história, devido à perspectiva de Harry estar nas mãos de vários inimigos principais – e a iminente vinda do próprio Voldemort. Segundo, porque contém duas mortes importantes, uma das quais leva a uma cena altamente emocional que é uma interseção muito mais realizadora do que um gancho. Esse material impactante deve funcionar muito melhor no final de um filme do que no início, onde não haveria a preliminar emocional para uma seqüência de tamanha força. Mover a Mansão dos Malfoy e a morte de Dobby para a Parte Dois pode não só nulificar o clímax da Parte Um, mas também comprometer o início da Parte Dois.

Qual seria a sensação se "Cálice de Fogo" tivesse terminado logo quando Harry e Cedrico pousam no cemitério, guardando a morte de Cedrico e o duelo com Voldemort para o início de "Ordem da Fênix"? Embora o cemitério seja de fato o clímax do livro "Cálice de Fogo" e a Mansão dos Malfoy seja apenas a metade de Relíquias da Morte, a analogia é adequada porque se trata do final de um filme – seja um único filme ou a "parte um" de outro. E ainda assim, mesmo no livro o capítulo da Mansão dos Malfoy é conhecido como um mini-clímax.

Até mesmo de um ponto de vista estrutural, faria mais sentido fechar a Parte Um com o funeral de Dobby. Desde "Cálice de Fogo", todo filme de Harry Potter termina com uma morte e Harry traçando sua perspectiva de um futuro incerto. A morte de Dobby e a resolução de Harry de achar as Relíquias da Morte seriam os elementos equivalentes em "Relíquias da Morte Parte Um".

Outra constante nos filmes é o deus-ex-machina, como Fawkes e o Chapéu Seletor em "A Câmara Secreta", o Patrono aparentemente de Tiago Potter em "Prisioneiro de Azkaban", e a chegada da ordem no Ministério em "Ordem da Fênix". Em "Relíquias da Morte Parte Um", Dobby desempenharia o mesmo papel.

E ainda outra questão: no início de "Relíquias da Morte" é mostrado Voldemort e seus Comensais da Morte em seu quartel-general, que descobrimos ser a Mansão dos Malfoy. Então faz sentido que o ponto culminante da Parte Um se passe naquele mesmo lugar, tornando a interseção mais redonda e consistente.

Alguns poderiam dizer que, se a Mansão dos Malfoy se mantiver na Parte Um, sobraria pouco material para a Parte Dois. Isso não é uma certeza, haja vista que o livro pode ter menos da metade de suas páginas depois da Mansão dos Malfoy, mas são páginas com amplos espaços para a liberdade criativa dos cineastas de preencher a Parte Dois com seqüências que não estão no livro, ou desenvolver as que estão. O preparo antes da batalha final com o caos aumentando em Hogwarts, e as descobertas sobre a vida conturbada de Dumbledore, por exemplo, são alguns temas que podem ocupar a metragem da Parte Dois, não para ter mais duração de tempo, mas no intuito de prover o filme com grandes cenas. Em todo caso, não é uma certeza que a Parte Dois ficaria desfalcada sem a Mansão dos Malfoy – não tanto quanto a Parte Um ficaria, em uma questão de equilíbrio.

quinta-feira, maio 14, 2009

Finais Alternativos de Credopúsculo

Pois é, como o final da série “Crepúsculo” é demasiado sem graça e previsível (tanto que até eu que larguei na metade do primeiro volume sei como termina.-.), pareceu apropriado eu sugerir os meus finais alternativos. Bom, meus não, de alguns autores conhecidos. Vejamos como eles terminariam a história.
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J.R.R. Tolkien: Edward é morto por Jacob (que antes fez o favor de lhe comer a mão), ressuscita, renuncia a sua imortalidade e passa o resto da vida escondido com Bella, até passarem para além dos círculos deste Mundo.


Shakespeare: Pensando que Edward morreu, Bella se suicida. Ao descobrir o acontecimento, ele consegue se matar mesmo.


James Joyce: Um monólogo de Bella com 100 páginas de extensão, porém menos de um minuto de cronologia, sem nenhuma pontuação e cheio de passagens pornográficas, porque o marido lhe pediu café na cama antes de dormir. O Sr. Edward Cullen gostava de comer as vísceras de quadrúpedes e aves, mas não de humanos, pois era um vampiro vegetariano.


Gabriel García Marquez: Muitos anos depois, em seu leito de morte, Bella se lembraria daquele dia distante em que seu pai a levou para conhecer aquela cidade bizarra cheia de gente que brilha.


Homero: Depois de enfrentar os mares, monstros gigantes e o próprio Hades, Edward consegue voltar para casa e descobre que durante todos esses anos Bella o esperou, casta e fiando pacientemente. (Segundo Heródoto isso é tudo mitologia, e na realidade ela pulou a cerca com Jacob e mais uma dúzia de lobisomens.)


Dante Alighieri: Edward atravessa o inferno e o purgatório até chegar no paraíso, onde é guiado por Bella. Porém, enquanto ele platonicamente só pensa que l’amor muove Il sole e l'altre stelle, ela tem segundas intenções não muito aceitas lá em cima. Em vez de versos, tudo isso narrado em prosa e em 1° pessoa, de forma muito mais piegas e melodramática.


Philip Pullman: Edward e Bella não podem ficar juntos, porque... bom, porque o autor não quer, e fez a existência do universo depender de os dois ficarem separados, e ponto final. Que azar.


Machado de Assis: Edward e Bella levam uma vida leviana e burguesa, até ele perceber que o filho é a cara do Jacob. Edward vai viver na Europa e séculos depois, para espantar o tédio, resolve escrever uma autobiografia sobre os chifres.


F. Scott Fitzgerald: Enquanto o casamento vai de mal a pior, Edward fica cada vez mais entediado do luxo e do hedonismo. Bella começa a perder a sanidade mental porque aquela vida não é a imagem de perfeição que esperava, e o abandona. Com o fim dessa vida, ele fica fadado a passar o resto de seus infinitos dias no ensino médio, agora sem orgulho, e sem brilho (e sem trocadilho também).


Franz Kafka: Alguém certamente calunia Edward C. (provavelmente dizendo que ele é gay), pois certa manhã é detido sem ter feito mal algum. E já que em seus cento e tantos anos de idade nunca se preocupou em estudar Direito, é barrado na porta da Justiça. Um dia, dois funcionários de nomes Blade e Van Helsing vêm lhe encravar uma estaca no coração, cumprindo a inexorável sentença da qual não cabe recurso. Como um cão.


Oscar Wilde: Descobre-se que Edward não é vampiro coisa nenhuma, apenas tem um retrato bastante útil que envelhece no lugar dele. Ao saber a terrível verdade, Bella se suicida. Para ela, a beleza não é tudo mas é o que importa. Além do mais, desta vez Edward é gay mesmo.


Dostoiévski: Bella abandona Edward no altar para fugir com um milionário devasso e viciado em jogos de azar, e acaba sendo morta por ele. Quanto a Edward, apesar de humilhado e ofendido, percebe que um instante de felicidade verdadeira pode iluminar toda uma vida— mesmo que a tal vida dure vários séculos. Mas, não obstante, Bella sempre acreditou que a beleza salvará o mundo: é por isso que nunca soube falar de outra coisa.


José Saramago: Não se augure nada de bom da vida de um vampiro, ausentes que são dos arquivos do cartório da velha átropos, pois facto é que, quando bella swan disse a edward, Morde-me e nunca morrerei, pedido esse que para o vampiro era um fenómeno absurdo, edward respondeu-lhe de modo lacónico, Antes a morte que tal sorte.


J.K. Rowling: Quase todo mundo morre em uma sangrenta batalha travada na high school. Os sobreviventes ficam felizes para sempre como funcionários públicos. A paz é tanta que passam o tempo fazendo filhos— e mais importante, inventando nomes terrivelmente ridículos para todos eles.

Por que A Bússola de Ouro deveria ter uma versão do diretor.

Quando exigido pelo estúdio para montar O Poderoso Chefão com no máximo 2h15m de duração, Francis Ford Coppola enxugou o filme, cortando tudo que não era estritamente fundamental para a trama, e com algum esforço chegou a 2h20m. O resultado disso foi um telefonema mal-humorado do executivo Robert Evans: “Eu pedi um filme, você me deu um trailer!” E assim Coppola pôde voltar à duração original de 3 horas, que é o filme que conhecemos. A versão mais curta, diz o diretor, preservava a trama principal, mas todo o material humano havia sido cortado. Permanecia o enredo, mas sem a cor.

A Bússola de Ouro não teve a mesma sorte. Acabou nos cinemas como um filme com 1h53m de duração, onde subsiste o enredo, mas falta o material humano. O filme é um longo trailer para um filme mais sombrio, mais profundo e mais emocionante, ainda não lançado: a versão do diretor e roteirista, Chris Weitz. A versão lançada nos cinemas não é o filme que ele queria... e há vários motivos para crer que o filme, se fosse da maneira que ele desejava, seria muito melhor.

Não se sabe ao certo de onde partiram as decisões fatídicas que fizeram com que A Bússola de Ouro, originalmente um filme muito promissor, resultasse numa obra mediana e não bem sucedida em bilheteria. Mas não há dúvida de que as decisões mais prejudiciais, tomadas dois meses antes da estréia e contra a vontade do diretor, foram estas: 1) a eliminação da seqüência final (para ser então usada na abertura do segundo filme, sobre o qual ainda não se tem notícias) e 2) a inversão da ordem cronológica dos acontecimentos ambientados, respectivamente, na estação experimental de Bolvangar e em Svalbard, o reino dos ursos.

Por que, do ponto de vista cinematográfico (portanto sem comparações com o livro nem entrar no mérito da fidelidade ao original-- este texto não pretende comparar o livro com o filme, mas a versão lançada nos cinemas com a versão original do diretor, até onde se pode reconstituir a visão de Weitz), essas duas modificações foram particularmente tão danosas?

A primeira delas, porque simplesmente eliminou o clímax do filme, o que por si só é extremamente empobrecedor. Eliminou-se da projeção um final que seria intenso, surpreendente e emocionante, a julgar pelo material visto nos trailers e nos storyboards do diretor anterior, Anand Tucker, baseados no roteiro de Chris Weitz, e pelas declarações do próprio Weitz, que considerava essa seqüência um “grande momento emocional” e comparava à despedida de Rhett Butler e Scarlett no clássico final de E o Vento Levou. Essas cenas finais apresentariam, ainda, as impressionantes imagens da aurora boreal revelando o caminho para o outro universo, abrindo uma cortina no céu para uma bela cidade renascentista (momento que os técnicos dos efeitos especiais consideraram o mais desafiador do filme), o encontro entre os personagens de Nicole Kidman e Daniel Craig, o trágico desfecho da missão de resgate de Lyra (Dakota Blue Richards) e a sua motivação de encontrar a fonte do Pó antes de seus inimigos. Portanto um final que, mais provavelmente, faria o público sair da sala satisfeito e ansioso pelo segundo filme e/ou com vontade de assistir outra vez o primeiro.

Em vez disso, a versão lançada nos cinemas usa um final emocionalmente insatisfatório, com um anti-clímax revoltante— tanto para os fãs do livro, por saberem e esperarem o que deveria acontecer depois, quanto para o público que não leu o livro, que tem sua expectativa destruída por um final repentino e sem graça. É como terminar Guerra nas Estrelas quando a frota rebelde se aproxima da Estrela da Morte, e colocar a batalha no início de O Império Contra-Ataca. Quando aparecem os créditos, o público se faz a mesma pergunta do rei urso: “Isso é tudo?”

O anti-clímax também é conseqüência da segunda modificação, obviamente feita em virtude da primeira, e que também muito comprometeu o ritmo e o desenvolvimento do filme, resultando em uma montagem bastante desnivelada: é fácil ter a impressão de que a partir da metade do filme em diante, a qualidade decai bruscamente e a história se perde. Eis por quê.

No roteiro e na montagem original de Chris Weitz, Lyra era seqüestrada pelos caçadores no acampamento gípcio e entregue em Bolvangar, onde descobria que Lorde Asriel (Craig) era prisioneiro na fortaleza dos ursos. Após os eventos na Estação Experimental, ela partia para Svalbard e, devido a uma tempestade, era separada do grupo e levada ao rei urso, culminando na luta entre os ursos Iorek e Ragnar, o grande momento de ação do filme.

Sem dúvida essa ordem cronológica original tem uma fluência e coerência que se perderam com a inversão dos acontecimentos. Na versão final, Lyra é levada pelos caçadores ao rei urso e resgatada por Iorek, que reassume o trono, e daí prosseguem o caminho para Bolvangar, enquanto Lorde Asriel não é prisioneiro de ninguém. Ora, com isso a luta dos ursos, que deveria ser uma cena-chave porque daquilo dependia o resgate de Lorde Asriel e todos os acontecimentos posteriores, perdeu a importância essencial, e Svalbard se tornou um mero desvio na história: uma seqüência de ação sem muito significado dentro do enredo, quase supérflua, quando devia ser um momento fundamental.

Além disso, a incômoda sensação de anti-clímax se agrava pelo fato de que, após a luta entre Iorek e Ragnar, o ritmo decresce, não há nenhuma outra cena mais empolgante do que essa pelo resto do filme, que volta ao enredo depois desse desvio e ainda roda por mais meia hora. A cena da guilhotina prateada e a batalha contra os tártaros são aquém do duelo entre os ursos e funcionariam melhor antes dele, com o ritmo do filme crescendo, e não depois. O ritmo em si fica bastante comprometido quando, logo após a vitória de Iorek, sem “momento para respirar”, há uma transição brusca e aparecem ele e Lyra correndo para Bolvangar e chegando a uma ponte de gelo, em um corte grosseiramente desarmônico. A cena dá uma grande sensação de estar fora do lugar.

E na verdade está mesmo. Originalmente a cena da ponte de gelo seria logo antecedente à seqüência final do filme, e prepararia para o clímax emocional na aurora boreal. Além disso, seria acrescido o suspense de saber que resta pouco tempo a Lyra para salvar seu amigo Roger no outro lado da ponte, ao mesmo tempo em que uma aeronave de guerra ataca a fortaleza dos ursos. Na versão final esses recursos foram desperdiçados, e a cena correspondente perdeu o impacto que deveria provocar. Eu arriscaria dizer, na versão final essa cena ficou bastante tediosa e sem propósito.

E mais: em Bolvangar, Lyra escuta a Sra. Coulter (Kidman) dizer que Lorde Asriel subornou os captores e construiu um laboratório. Na versão original, Lyra escutaria que Asriel está preso, afinal já tinha sido mostrada, anteriormente, uma seqüência de ação onde ele era capturado nas montanhas por caçadores samoiedes. Mas como na versão final a fortaleza dos ursos foi transferida para antes de Bolvangar e Lyra já havia passado por lá, não faria sentido Asriel ser prisioneiro do rei-urso, de forma que o diálogo sobre a prisão foi substituído por essa informação sobre o suborno. Apesar disso a cena onde Asriel é capturado continuou na versão final. Ora, por que deixar lá uma seqüência que mostra Asriel sendo preso... só para depois dizer que ele na verdade não foi?! Outra seqüência importante que ficou inválida e virou apenas um vago momento de ação no filme, sem significado no enredo, e até incoerente.

São esses os defeitos mais graves, porém podemos chamar ainda atenção para outras cenas promissoras, de desenvolvimento de personagens e aprofundamento de enredo, que foram excluídas, presumivelmente para manter o filme com menos de duas horas de duração. Storyboards oficiais, entrevistas, vídeos divulgados na internet e outras fontes, como livros ilustrados do filme, fornecem uma boa noção do ótimo material que não chegou ao cinema— e até agora, nem ao dvd.

Não apenas no fim e no meio a versão de cinema tem problemas, como no início também. O filme começa com um travelling de uma rua na Oxford do nosso mundo, através de uma “janela” para a Oxford de Lyra, então ouvimos um voice-over de Serafina Pekkala apresentando os povos daquele mundo—ursos, gípcios e bruxas-- à la Senhor dos Anéis, e explicando o que são os daemons e o aletômetro. Bom, esse início da versão do estúdio não parece ser o que Chris Weitz originalmente concebeu, escreveu e filmou. Pelas seguintes razões: Primeiro, podemos notar que quase todas as tomadas durante as explicações de Serafina são tiradas de outras partes do filme. E na prévia de cinco minutos há uma (bela) cena excluída em que Lyra caminha através de um corredor, seguida de perto por um rato, que é seguido por um gato. O rato vira na direção do gato, e se transforma ele próprio em um gato. Enquanto o gato real sai correndo, o gato transformado vira-se na direção da tela e diz: “Que estranho. Até parece que ele nunca viu o daemon de uma pessoa antes.”

Parece óbvio que Chris Weitz tinha a intenção de apresentar os daemons no filme não com uma explicação simplista em voice-over , mas com esta cena bastante engenhosa, que visualmente mostra que os daemons mudam de forma, falam e são de alguma forma conectados aos seres humanos, além de cada pessoa ter um daemon. Seria uma abertura e muito mais instigante e uma introdução mais interessante e surpreendente àquele novo mundo e aos daemons.

Tanto o diretor Chris Weitz quanto a atriz Eva Green sentiram falta da sub-trama do relacionamento entre a bruxa Serafina Pekkala (Green) e o gípcio Farder Coram (Tom Courtenay), que na versão final foi reduzida a uma breve referência apenas. Serafina fica invisível quando visita o navio dos gípcios para aconselhar Lyra, e na seqüência completa, ela vê seu antigo amante mas não se mostra para ele, apenas pede para Lyra entregar-lhe um galho de pinheiro-nubígeno como demonstração de afeto; Eva Green descreve a cena da seguinte forma: “Ele não pode vê-la, e isso é doloroso para ela também. Então quando ele sobe no convés, ela desaparece, e ele pode senti-la, ou ao menos ele sente alguma coisa, mas ele desce de volta, muito triste. Isso a faz chorar.”

Na versão final, não só perdemos esse toque emocional, como também a visita de Serafina no convés do Nooderlicht é extremamente rápida e quase aleatória, com um diálogo que pouco justifica a entrada da personagem em cena, e menos ainda o motivo de Lyra se afeiçoar a ela.

Em seu roteiro, Chris Weitz escreveu para essa cena um ótimo diálogo, que consta nos storyboards. Na versão final, restou cerca de 1/3 do diálogo apenas: a parte em que Serafina Pekkala fala sobre Bolvangar. Foram cortadas as referências aos ursos e à guerra, bem como uma interessante fala, vista em vídeos dos bastidores, na qual Serafina adverte Lyra: “A grande guerra. Não sei de que lado as bruxas vão ficar. Na próxima vez em que nos encontrarmos, poderemos ser amigas ou inimigas.” Tampouco consta a tomada das estrelas cadentes e a de Lyra se esgueirando para fora da cabine, ainda chocada por ter visto, anteriormente, um gípcio ferido morrer conforme a bússola de ouro previra.

Essa cena da morte do espião gípcio, também excluída, certamente fez falta. Esse acontecimento deixa claro para Lyra que ela embarcou em uma jornada realmente perigosa, onde pessoas estão morrendo enquanto os inimigos a procuram— o que justificaria o diálogo subseqüente onde Lyra confessa a seu daemon que está assustada com aquilo em que se envolveram. Na versão final, porém, dá a entender que Lyra ficou intimidada e quer voltar para casa por causa de duas vespas mecânicas que tentaram pegar a bússola de ouro.

Todo o tempo (e interação) de Lyra com os gípcios é muito reduzido. No final do filme, a despedida é brusca. Na verdade, ela mal acontece: Lyra troca um olhar com rei dos gípcios, e eles simplesmente vão embora. Em um vídeo dos bastidores há um momento interessante, em que Serafina Pekkala não só reencontra finalmente seu ex-amante humano, como promete a ele que vai proteger Lyra dali em diante. E Farder Coram diria: "Seja qual for o lado que você vai escolher no que está por vir, faça com que seja o lado de Lyra." Sem esses momentos de desenvolvimento de personagem não dá tempo de o público se afeiçoar pelos personagens secundários, nem entender por que Lyra o faz.

Outra cena que era “consideravelmente longa, e foi reduzida ao essencial”, nas palavras do diretor nos comentários do dvd, é o diálogo entre Frei Pavel (Simon McBurney) e o Emissário Magisterial (Derek Jacobi). Na versão final os dois vilões conversam vagamente sobre Intercisão e suspeitam da Sra. Coulter. Nos trailers há duas falas dessa cena que não chegaram à versão final. O Emissário dizendo: “A lealdade dela será devidamente testada”, certamente se referindo à Sra. Coulter, que na cena seguinte é mostrada tendo sentimentos conflituosos; e Frei Pavel perguntando: “O que foi divulgado sobre a menina Belacqua? Os rumores atravessaram o país.” Detalhes que, se não são imprescindíveis, tratariam melhor das motivações dos vilões.


Também a respeito dessa cena, na prévia de 5 minutos há algumas tomadas excluídas, como o Emissário passando algum tipo de relatório a um assistente, e uma interessante tomada de cima, ambas com uma bela fotografia. A tomada excluída em que o Emissário fala sobre o teste de lealdade da Sra. Coulter também tem uma ótima composição: o Cálice no plano de fundo do Emissário é visualmente forte e cheio de significado, quando se trata de lealdade, fé, sacrifício e, é claro, Autoridade. A cena teve muito a perder com essas exclusões.
(Sem falar que a inscrição no símbolo do Magisterium no piso, “Unica Ecclesia Super Omnia” [Uma Igreja Sobre Todas] foi deletada na versão final da New Line. O que é até compreensível, mas bastante desnecessário, por apagar uma sutileza, e uma boa obra do Departamento de Arte.)


Outro momento excluído que explora os vilões é quando os soldados do Magisterium invadem a Faculdade Jordan para prender o Reitor. De acordo com os storyboards, na versão original, onde esta cena acontecia pouco depois da partida de Lyra com a Sra. Coulter, o Reitor observaria enquanto o zepelim decola (!), teria um diálogo com o Bibliotecário, e então seria preso. Na versão exibida nos cinemas, onde essa cena foi adiantada para duas cenas mais cedo (antes de ele dar a Lyra o aletômetro), o Reitor observa o zepelim ainda no solo (!), fala parte do diálogo com o Bibliotecário, e não ocorre a invasão à Faculdade, nem a prisão do Reitor.
Bom, eu não diria que a cena da prisão é primariamente essencial, mas explicaria melhor o porquê de o Reitor dar a Lyra a bússola antes que o Magisterium consiga se apossar do objeto no saque à Faculdade, bem como adicionaria alguma ação e/ou tensão. Sendo que na prévia de 5 minutos vemos a tomada do Reitor olhando enquanto o zepelim decola (!), e no trailer de cinema vemos um soldado do Magisterium arrombando uma porta na Faculdade Jordan, podemos presumir que o destino do Reitor estava na visão original de Chris Weitz.


Mas nem só longas seqüências fazem a diferença. Alguns problemas da montagem são tão sutis, que quatro ou cinco segundos a mais resolveriam. Por exemplo, a primeira aparição da Sra. Coulter: a cena antecedente termina com a governanta penteando o cabelo de Lyra, então corta para um plano geral do grande salão, vemos a Sra. Coulter caminhando até a mesa, ouvimos a voz do Reitor repreendendo Lyra, e finalmente vemos Lyra. É uma transição estranha, de certa forma desarmônica. Ficaria mais fluente se aparecesse primeiro Lyra entediada na mesa, então o Reitor começasse a repreendê-la, e depois víssemos a Sra. Coulter atravessando o salão durante a fala do Reitor, até ela chegar à mesa e interrompê-lo. Curiosamente, no storyboard a cena é exatamente assim.

Nessa seqüência, também foi excluído um diálogo de aproximação entre Lyra e a Sra. Coulter, onde a menina conta sobre a morte de seus pais e sobre Lorde Asriel, e Coulter responde: “Que história fascinante.” Ajudaria a tornar mais crível quando a Sra. Coulter convida a garota para ser sua assistente, sob o pretexto de poder confiar nela.

Podemos acrescentar que um detalhe supostamente estaria em algum lugar entre essa cena e a partida de Lyra com a Sra. Coulter: a informação de que Jessie Reynolds, a sobrinha da governanta, teria sido levada pelos Papões (Gobblers). Deve ser a razão pela qual a governanta, Sra. Lonsdale, parece tão chorosa e preocupada em sua próxima e última cena, quando o Reitor lhe pede que fique na porta conferindo se ele foi seguido.

Essa informação suprimida teria sustentado a tensão e tornado mais palpável o horror do que os Papões estão fazendo, o que na versão final é bem vago e relativamente leve. Ora, a versão do cinema, com nada mais do que Lyra falando levianamente a Roger que os Papões estão raptando criannças, não faz o Conselho de Oblação parecer tão terrível àquela altura. Essa omissão (bem como a exclusão da prisão do Reitor) suaviza a sensação de perigo, e quando Lyra descobre que a Sra. Colter está no comando dos Papões, não parece grande coisa. Tais exclusões, como muitas outras, fazem faltar no filme o drama genuíno e o impacto emocional.

A vida de Lyra na casa da Sra. Coulter também é montada de forma apressada, em flashes rápidos. A fala da Sra. Coulter no vídeo da pré-produção, comparando Londres com a sociedade dos ursos de armadura, foi retirada. A chegada na casa de Coulter presume-se originalmente mais longa, já que temos vislumbres de tomadas inéditas dessas cenas em uma prévia de 5 minutos, por exemplo a Sra. Coulter dizendo "Espero que sejamos felizes aqui", e Lyra entrando em seu quarto parecendo bem feliz. Bem, não tem nada particularmente errado com a edição em flashes rápidos, mas talvez esse ponto da história pudesse ser mais explorado, para adicionar consistência.

Por exemplo, em um vídeo ambiental no DVD, vemos a Sra. Coulter dar um beijo de boa noite em Lyra. Podemos inferir que essa tomada é da cena em que Lyra está tentando decifrar a bússola, até que a Sra. Coulter entra e Lyra esconde depressa o instrumento debaixo do travesseiro. Coulter diz: "Está limpa e pronta para dormir?" e a cena termina. Se a cena tivesse prosseguido e Coulter se aproximado da cama para beijar Lyra, haveria uma tensão continuada, que no entanto é interrompida porque a cena acaba justamente quando se cria um suspense com a entrada de Coulter.

A festa em Londres era uma cena mais longa, segundo artigo da New York Magazine (07/12/07). Esse artigo, que compara o roteiro de Tom Stoppard (o qual o estúdio rejeitou) com o roteiro de Chris Weitz, e este com a versão final do filme, refere-se a essa e outras cenas deixadas de fora e pergunta: “Por que isso tudo foi cortado? (...) Por que A Bússola de Ouro precisou se limitar a duas horas? Certamente O Senhor dos Anéis provou que grandes épicos podem ter duração épica e continuar bem sucedidos. (...) No fim foi essa decisão mais do que qualquer outra que condenou A Bússola de Ouro à mediocridade.” E ainda: “O roteiro original de Weitz na verdade era ótimo e nos deixa tristes com o que o filme poderia ter sido.”

Sem dúvida é de se estranhar que um épico com a amplitude e profundidade de A Bússola de Ouro realmente precise de uma montagem tão corrida e compactada, sem espaço para desenvolver seus personagens e manter sutilezas. Obviamente não se pode pôr tudo de um livro de 400 páginas em um filme, mas o roteiro de Weitz tinha tudo que um filme precisa para ser ótimo, e cabendo dentro de 3 horas em média. Os próprios trailers e spots de televisão sugeriam um filme bastante diferente daquilo que acabou sendo, para a decepção do público que esperava que a trilogia Fronteiras do Universo fosse a próxima experiência cinematográfica de fantasia com a magnitude de O Senhor dos Anéis, como as propagandas davam a entender.

E não seria impossível suprir essa expectativa, se o filme tivesse sido devidamente apresentado. No final das contas, para fazer de A Bússola de Ouro um filme excelente não é preciso filmar de novo, pois em todas as suas fases o projeto teve muitas qualidades: um roteiro pertinente, bem adaptado e empolgante, direção de arte impressionante, bela fotografia e trilha sonora, um elenco de ponta com boas atuações, uma direção competente e comprometida. Com um trabalho tão bom em todas as instâncias, é triste que tudo tenha se prejudicado em plena montagem final, quando dois meses antes da estréia foram anunciadas as modificações que puseram muito a perder.

Certamente a versão de Chris Weitz está aí em algum lugar— além de nos vídeos de cenas inéditas do filme que vazaram no vídeo-game, e que nos dão idéia de como as modificações fatídicas foram tomadas na última hora. Muitas das cenas cortadas já estavam prontas, ou eram relativamente baratas de se finalizar, uma vez que as seqüências mais dispendiosas já estavam pós-produzidas. Certa vez o próprio diretor manifestou interesse em fazer uma versão mais longa do filme para o DVD, com duas horas e meia de duração (cerca de 40 minutos a mais que a versão de cinema), idéia que Daniel Craig e Eva Green acolhiam com entusiasmo. Logicamente, ainda sem acrescentar o final cortado, que seria usado na abertura do segundo filme.

Mas agora, com as probabilidades de ser produzido o segundo filme parecendo cada vez mais remotas, o que será da seqüencia final, e de tanto material ótimo que não saiu da sala de edição?

Chris Weitz está atualmente dirigindo o segundo filme da série Crepúsculo (no qual também está envolvido o compositor Alexandre Desplat, de A Bússola de Ouro), o que obscurece ainda mais as perspectivas quanto à filmagem de A Faca Sutil e lança dúvidas sobre uma potencial versão do diretor de Bússola. Será que Weitz ainda se sente de alguma forma comprometido com o público de Fronteiras do Universo, que ele considerava o trabalho de sua vida?

Nos extras do DVD ele declara que certas vezes, durante a produção do filme, acessou fóruns e sites de fãs na internet e teve “noites insones” com a falta de confiança que muitos desses fãs demonstravam nele, desacreditando que ele seria a melhor escolha para adaptar a trilogia. Pois bem, hoje é reconhecível que ele fez um ótimo trabalho, tanto como roteirista quanto como diretor. Resta-nos assistir à sua visão original do filme e conferir esse trabalho mais adequadamente, sendo que ele não chegou intacto até nós pela versão lançada nos cinemas.

terça-feira, janeiro 27, 2009

Preâmbulo

O profeta saiu de casa antes do amanhecer. Antes do amanhecer olhou para trás e de imediato censurou a si mesmo por isso. Eis que, tendo então de fato saído de casa, não mais tornou os olhos. Renegou lar e pátria, e não sentiu remorsos. Para sua casa, a madrugada; para sua estrada, o amanhecer. E saiu de casa antes do amanhecer, para seguir de encontro à alvorada sem sentir remorsos. Por isso o profeta não mais tornou os olhos para a madrugada e, farejando o vento das trilhas, encararia a aurora em breve.
Pensou consigo: “Se eu fosse um engenho de treva e bruma, caminharia com pés mais ligeiros, e passos mais sutis sobre relva e rocha sólida. No entanto sou eu relva e rocha sólida, caminhando com um engenho de treva e bruma, sem pés e sem deixar passos. O engenho da treva é ser ligeira; O engenho da bruma é não deixar passos; Nada quero com relva e rocha sólida, exceto ouvir-lhes os muitos sons; Pois treva e bruma são criaturas mudas, enquanto relva e rocha sólida são surdas. E cego é o caminho que vê, porém não fala e nem escuta. Caso se abstenha voluntariamente, eis que é uma criatura destituída de tato. O olfato insuficiente não fareja o vento; O paladar insuficiente não prova do sabor da aurora. Treva e bruma, relva e rocha sólida, vento e aurora. Aquele que tiver todos os sentidos apurados para receber, há de caminhar com pés mais ligeiros e sem deixar passos. É esse o engenho da caminhada.”
O profeta reduziu a velocidade dos próprios passos. Não tinha pressa, conquanto soubesse que a estrada é longa. Tinha consciência de que haveria de se cansar, fosse em hora precoce ou tardia. E estava sozinho. Ninguém sequer lhe dissera “Deus te acompanhe”, e mesmo que o houvessem feito, sabia que nem deuses nem terrenos lhe fariam companhia antes da alvorada. Caminhava sozinho, antes do sol, antes da estrada. Deuses e terrenos ainda estavam para ser encontrados mais adiante. No momento apenas treva, bruma, relva e rocha sólida, elementos que lhe indicariam o caminho. Ainda nem chegara ao ponto de considerar a si mesmo peregrino em terra estranha; E nem receava se perder, porque de fato não tencionava se localizar-- A quem não tem rumo, o vento sopra favorável em qualquer uma das direções. Eis que o profeta seguia farejando a brisa e indo de encontro ao sol que nasceria em breve, sem prova alguma de fazer isso no leste. A madrugada tem suas estrelas, mas elas não conhecem o rumo dos viajantes. O dia trará o ciclo do sol independentemente dos pontos cardeais. Os astros indicam, mas não impulsionam; Iluminam para espelhar algo que tentam enxergar. O profeta não queria trazer luz apenas à própria sala.
Não sentia o profeta fome ou sede, embora nada tivesse provado antes de sair de casa; e sabia que não estava para encontrar alimentos ou água em horas primeiras. Não havia quem lhe desse o pão-- E nunca houvera mesmo, pois o profeta não aceitava receber a parte de quem não sabia dividir; Aceitava de quem soubesse multiplicar, e aceitava esmolas apenas de quem se mostrasse mais pobre que ele próprio. Saíra de casa decidido a aceitar cada vez com mais restrição.
Pressentia o sol. A aurora não tardava, e o profeta estava convicto de possuir olhos para enxergá-la-- Pois antes de iluminar é preciso ver, como antes de falar é preciso ouvir. E o profeta deixaria um mistério, assim como o sol poente anterior deixara, e todos os de outrora... E as vastas noites não eram descanso. Se havia algum, era aquele provocado pela sensação de afastamento, distância. Permanecer de pé, mas parado, era cansativo; permanecer sentado era cansativo; deitar-se de costas e observar o céu obscuro era cansativo-- apenas os passos mais largos eram restauradores, confortavam e davam abrigo. Tinham mais valor que os passos ásperos, demorados, pomposos e os quais erroneamente pensavam conduzir adiante. Antes mesmo de amanhecer, largo e ligeiro era o passo do profeta.
O cheiro ao redor lembrava-lhe aquele de laudas antigas-- A erudição não tem cheiro de papel, e ele sabia disso. Ora, então era muito bom sentir insigne cheiro ainda tão no início da jornada. O futuro poderia mudar isso, porém alterando apenas o presente vindouro-- O passado entrara na Eternidade, tornara-se indestrutível. Onde o profeta pisara, pisara; e não mais havia meios de alguém desmarcar ou anular esses passos, mesmo que tenham eles sido impressos em terra anteriormente ao sol nascer, pois é um ato que não precisa de testemunhas, sob luz ou sombra, em horas últimas ou primeiras. O profeta não queria que lhe fosse dada a capacidade, se é que tal havia, de reverter ou alterar os passos dados, pois enxergava mais facilmente a mão do desígnio naquilo que era irreversível.
Aguardando, o profeta sabia que sua aurora não seria a dos outros, tampouco a de todos. Apresentar-se-lhe-iam novas forças, independentemente da vontade alheia e dos esforços de seus futuros e inevitáveis adversários-- E ele fazia questão de contar com mais opositores que aliados em quantidade. Mesmo a solidão parecia mais valiosa, sabendo que em algum outro ponto do espaço e do tempo havia oponentes e aliados, pois a solidão mais absoluta deixava de ser desterro para tornar-se onipresença. O amanhecer não era solitário, pois seus companheiros eram os iluminados, porém não era onipresente, pois não chegava até os confins do universo sendo a mesma combinação. Assim sendo, todos poderiam procurar por suas próprias auroras, de qualquer sol-- E sempre haveria um dia seguinte para encontrar a iluminação.
O profeta percebeu a mudança na coloração do céu, dos horizontes, especialmente adiante, onde uma faixa azulada, mais clara que a grande região umbrosa, começava a se expandir. Não era um anúncio. O profeta estava acostumado a escutar o canto dos pássaros, mas naquele momento esse som canoro não tocava aquele campo e aquela trilha, pois ali não mais havia pássaros ou criaturas terrestres-- apenas o engenho de treva e bruma, cantando para o iniciado e animando-lhe o empenho. O próprio amanhecer era uma triste canção de nostalgia penetrando por entre as altas árvores, chegando em toda parte. O profeta, considerando que havia poucas árvores às margens da trilha-- a densidade da floresta era mais adiante--, poderia olhar para cima e enxergar nada mais que a imensidão sem molduras. Não queria um céu sem nuvens, e o que tinha eram nuvens finas, pouco visíveis ainda na penumbra e não conseguindo velar estrelas. O sol era o que vinha para velar muitos astros.

quarta-feira, novembro 26, 2008

A Criatura Suprema

Naquele horário demoraria bastante até passar um ônibus que levasse Céli daquele longínquo bairro de volta para casa, em um bairro mais longínquo ainda ao outro lado da cidade, e ele queria dormir o quanto antes, por isso subiu na primeira laje que achou conveniente e se acomodou ali. Era a laje de um prédio em cujo primeiro andar funcionava uma padaria, e no segundo a presumível residência do padeiro; mas o prédio todo estava então fechado e com as luzes apagadas. De fato, quase não havia iluminação e movimentação na rua inteira: alguns postes acesos na calçada do outro lado e pouquíssimas casas iluminadas eram mais tênues que as densas nuvens avermelhadas retendo outras luzes da cidade.

Céli deitou-se na laje empoeirada, primeiro estirado, mas depois encolheu-se um pouco contra a fachada do prédio, pois soprava um constante vento frio prenunciando chuva. Céli olhou para a calha mais acima e supôs que não se molharia tanto se a chuva não viesse muito forte. Embora ele não gostasse nada de frio, tirou a camisa para deitar-se sobre ela quando concluiu que ficar com a cabeça nas pedras era pior que ficar com pouca roupa no vento frio, e encolheu-se mais. Apesar disso, ele não demorou nada para dormir após ignorar por completo os sinais de chuva, a superfície áspera da laje e até a possibilidade de mexer-se durante o sono e cair dali.

Mas em seu sonho também havia sinais de chuva. Acontece que o evento onírico não se passava mais em uma rua abandonada pelo poder público, e sim em uma ampla floresta, durante o que parecia uma serena manhã. Havia árvores espantosamente altas e muitas folhas no chão, e feixes de luz passavam pelas ramificações e pela neblina. Ainda estava frio, mas era agradável e acolhedor, e tanto melhor ficou quando veio a cair a chuva fina, cujo som nas folhas de relva era suave e onipresente.

O lugar era pressentido como infinito, mas Céli chegou a um rio sem outra margem. O semi-humano pensou em atirar-se na água, mas em vez disso pôs-se a escalar uma árvore. Teve muito trabalho até alcançar um dos galhos mais baixos e firmar-se nele, após o que seguiu passando para os mais altos. Ele não conseguia enxergar quanto ainda faltava subir para chegar a céu aberto, e conquanto subisse sempre havia mais ramificações a percorrer, além de que mais pálida ficava a luz do sol, mais forte se tornava a chuva nas alturas e mais impelido Céli se sentia. Em meio à chuva ele estava transpirando e não sentia frio. De certo momento em diante, ele perseguia implacavelmente uma forma luminosa indefinível através das ramas.

A chuva era então tempestade, e a luz do sol era opaca e bruxuleante. Céli ia com agilidade no encalço da figura luminosa, absorto e quase eufórico aproximando-se de sua presa, as garras à mostra e os dentes brilhando. Em certa altura a presa parou e virou-se como acuada, embora não estivesse.

- Eu desisto - falou a figura quando Céli postou-se diante dela.

- Render-se não adianta nada - respondeu o semi-humano. Estava mais relaxado, mas ainda respirando depressa e encarando sua preza com avidez. - Resistir também não, mas eu deixo que tente.

Ele saltou sobre a figura e ambos lutaram, acabando por cair do alto das árvores. Céli nadou e chegou até a suposta outra margem inexistente do rio. Saiu exausto da água e ficou deitado à margem, sob a chuva outra vez fina. Mais tarde ele se levantou com algum esforço e olhou ao redor. Ali era um campo, não mais floresta, mas o ambiente não demonstrava mudança.

Em breve a figura também emergiu, e rastejou até Céli. Tinha perdido a luminosidade e parecia um vestígio; por outro lado, demonstrava alguma potência que não tinha em sua forma anterior. Céli olhou com extática frieza para o ser a seus pés e, sob a chuva, voltou-se para as alturas:

- Os deuses me reconhecem como a criatura suprema do céu e da terra. Vamos, portanto, agora que temos coisas a fazer.

Ele despertou preguiçosamente, sacudiu os cabelos molhados e ficou alguns minutos sentado na laje empoçada, observando o movimento da rua e remoendo o que ainda conseguia lembrar sobre o sonho. A posição do sol indicava que já era quase meio dia, mas continuava chovendo e estava tão nublado que parecia ainda o início da manhã.

Finalmente Céli contou algumas moedas que tinha em um dos bolsos. Eram poucas, mas bastavam para um desjejum regular, por enquanto; o semi-humano resmungou consigo por causa da pequena quantia, porém aquilo era melhor que nada, de qualquer modo. Ele desceu da laje, torceu a camisa molhada, vestiu-a e entrou na padaria com ar de tédio, como quem estivesse farto de andar na rua em dias chuvosos e sombrios.

quarta-feira, novembro 07, 2007

Dia da ira (VI)

Como Semjaza escutou o ultimato do arcanjo Miguel com total apatia e renúncia a tudo, o Demiurgo tomou Azazel pelo líder da profanação:
- A terra inteira foi maculada pelos efeitos dos ensinamentos de Azazel. Toda a culpa do crime recairá sobre ele.
As forças do Reino do Céu e os Vigilantes entraram em batalha entre o céu e a terra, e a derrota dos anjos decaídos aconteceu não muito depois. A sentença imposta foi aquela mesma anunciada a Semjaza, e disse o Demiurgo ao arcanjo Rafael:
- Ata as mãos e pés de Azazel e atira com força pedras pontiagudas sobre ele, envolvendo-o em trevas; cobre sua face para que não possa enxergar a luz.
Mas Semjaza, que permanecia na mesma condição de antes e não participara da guerra, acabou sendo ignorado e esquecido por ambos os lados, e ele também ignorava tudo.
Por fim, o Demiurgo avaliou a corrupção da terra e a proliferação dos filhos dos Vigilantes. A solução que ele concebeu foi precipitar o grande dilúvio e devastar a terra na tentativa de purificá-la. Esse desastroso evento afinal chamou a atenção de Semjaza, mas ele nada pôde fazer senão lutar ele próprio pela vida buscando abrigo no cimo das montanhas. Quando as águas descobriram a terra, Semjaza soube que seus filhos estavam destruídos, e provavelmente também a memória daqueles episódios, a não ser pela história que o lado vencedor contaria à sua maneira.
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Azazel espetou o demônio outra vez com a tenaz em brasa, mas em vez de gritar ou se debater Semjaza encarou-o de volta e questionou:
- A sua decisão é essa? Acha que fazendo conseguirá que eu deseje estar em seu lugar? Isso é o que esclarece nossas diferenças, não podemos trocar de posição. Meu valor mais alto, agora vejo, difere muito do seu. Por muito tempo estive equivocado achando que o seu era o meu também.
O anjo fez menção de responder, mas não conseguiu e atirou a tenaz para longe.
- Assim é melhor, mas tente se acalmar- continuou Semjaza.- A inveja pode ser muito boa, você sabe; ou deveria saber. Mas por que nós, até nós, anjos caídos que não nos importamos com o pecado, nos recriminamos pela inveja enquanto cultivamos de consciência limpa pecados muito mais graves?- E sem ter resposta, ele prosseguiu:- Se não fosse pecado, talvez nos recriminássemos do mesmo modo, porque parece um sentimento de inferioridade, mesquinho e egoísta, mas não é da natureza de um demônio pensar dessa maneira. Para um demônio a inveja não representa inferioridade, mas vontade de poder, e nós realmente sabemos nos aperfeiçoar com isso. Acontece que somos muito narcisistas, e em nossas relações com os outros sempre pressupomos nossa superioridade e olhamos de cima até aqueles que invejamos. Temos para nós que a inveja é passagem para um estado mais sublime, uma forma excelente de se orientar, assim sabemos como se aliar aos mais fortes e usar os mais fracos. Também é a melhor forma de auto-conhecimento, pois é uma medida para conhecer os outros, e nos conhecer em relação a eles, e finalmente nos conhecer em relação a nós mesmos. Você, posso dizer, só estou conhecendo hoje; o que eu conhecia antes não era você de verdade, era um ídolo que eu mesmo criei e usei, e só me arrependo de não ter aprendido o suficiente com ele na época, por erro meu e idéias erradas. Se eu já fosse demônio desde então, seríamos muito mais próximos. Mas posso dizer que somos bastante, não se sinta desolado.
O anjo olhava-o com resistência, o orgulho por um fio, mas não tomou iniciativa de falar, e Semjaza acrescentou:
- Se precisar de um ídolo, eu estou disponível, até você se recuperar. Imagino que já podemos sair daqui e resolver isso.
Azazel abraçou o demônio, desatou-o das correntes e seguiu-o com passos caninos pelos corredores da catedral até o quarto de D. Rossini. Ao vê-los, o arcebispo praguejou mais alto que o coro cantando o Dies Irae do réquiem e berrou ordens para Azazel, mas o anjo, acolhido pela sombra de Semjaza, ignorou-o. Quanto a Semjaza, recolheu sua espada no canto do quarto e D. Rossini, pensando que seu fim chegara, não se moveu. Ele aguardava o golpe quando começou Lacrimosa, mas o demônio tinha seus termos para negociar.
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Semjaza escutou aquele réquiem outra vez um mês depois, no escritório de advocacia que era fachada do Sindicato da Ascensão, e pediu para diminuir o volume.
- Não gosta dessa música?- perguntou Vinçart.
- Barulhenta demais, com muita gritaria, e muito irregular- resmungou o demônio.
- Então procure escutar o de Dvorak, acho que combina mais com você.- Vinçart consultou o relógio.- Sikes está muito atrasado. Terá acontecido algo?
- Pouco provável. Azazel já provou sua eficiência e confiabilidade como guarda-costas.
- É o que parece, mas ainda acho que foi precipitada a sua idéia de fazer acordo com D. Rossini, o risco era muito grande e o resultado poderia ser desastroso.
- Mas eu não cometi nenhum erro, afinal de contas- disse Semjaza.- Não deixei nenhuma cláusula de que aquele sujeito pudesse se aproveitar, e não dei muita escolha a ele, além de sobreviver ou não.
- Você estava blefando- observou Vinçart.
- Estava, afinal não imaginei que ele valorizasse tanto assim a própria vida a ponto de negociá-la em troca da tutela de Azazel e da própria fortuna. Algumas vezes ainda julgo errado os humanos.
- O único juiz é o tempo, o resto são palpiteiros- disse Vinçart, enquanto o coro do réquiem sussurrava “quando judex est venturus”.- Não obstante, você fez um bom trabalho.
- Agora que D. Rossini fugiu para o exílio, a Igreja está fora do nosso caminho- disse Semjaza, indo até a janela.- Nossa próxima meta é o Estado, o leviatã onde desde os nossos tempos os demônios têm encontrado asilo e buscado a realização de seus valores.
Os metais do Tuba Mirum começaram a soar. Vinçart aumentou o volume, e Semjaza continuou a olhar pela janela fechada a tempestade lá fora.