Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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quarta-feira, novembro 07, 2007

Dia da ira (VI)

Como Semjaza escutou o ultimato do arcanjo Miguel com total apatia e renúncia a tudo, o Demiurgo tomou Azazel pelo líder da profanação:
- A terra inteira foi maculada pelos efeitos dos ensinamentos de Azazel. Toda a culpa do crime recairá sobre ele.
As forças do Reino do Céu e os Vigilantes entraram em batalha entre o céu e a terra, e a derrota dos anjos decaídos aconteceu não muito depois. A sentença imposta foi aquela mesma anunciada a Semjaza, e disse o Demiurgo ao arcanjo Rafael:
- Ata as mãos e pés de Azazel e atira com força pedras pontiagudas sobre ele, envolvendo-o em trevas; cobre sua face para que não possa enxergar a luz.
Mas Semjaza, que permanecia na mesma condição de antes e não participara da guerra, acabou sendo ignorado e esquecido por ambos os lados, e ele também ignorava tudo.
Por fim, o Demiurgo avaliou a corrupção da terra e a proliferação dos filhos dos Vigilantes. A solução que ele concebeu foi precipitar o grande dilúvio e devastar a terra na tentativa de purificá-la. Esse desastroso evento afinal chamou a atenção de Semjaza, mas ele nada pôde fazer senão lutar ele próprio pela vida buscando abrigo no cimo das montanhas. Quando as águas descobriram a terra, Semjaza soube que seus filhos estavam destruídos, e provavelmente também a memória daqueles episódios, a não ser pela história que o lado vencedor contaria à sua maneira.
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Azazel espetou o demônio outra vez com a tenaz em brasa, mas em vez de gritar ou se debater Semjaza encarou-o de volta e questionou:
- A sua decisão é essa? Acha que fazendo conseguirá que eu deseje estar em seu lugar? Isso é o que esclarece nossas diferenças, não podemos trocar de posição. Meu valor mais alto, agora vejo, difere muito do seu. Por muito tempo estive equivocado achando que o seu era o meu também.
O anjo fez menção de responder, mas não conseguiu e atirou a tenaz para longe.
- Assim é melhor, mas tente se acalmar- continuou Semjaza.- A inveja pode ser muito boa, você sabe; ou deveria saber. Mas por que nós, até nós, anjos caídos que não nos importamos com o pecado, nos recriminamos pela inveja enquanto cultivamos de consciência limpa pecados muito mais graves?- E sem ter resposta, ele prosseguiu:- Se não fosse pecado, talvez nos recriminássemos do mesmo modo, porque parece um sentimento de inferioridade, mesquinho e egoísta, mas não é da natureza de um demônio pensar dessa maneira. Para um demônio a inveja não representa inferioridade, mas vontade de poder, e nós realmente sabemos nos aperfeiçoar com isso. Acontece que somos muito narcisistas, e em nossas relações com os outros sempre pressupomos nossa superioridade e olhamos de cima até aqueles que invejamos. Temos para nós que a inveja é passagem para um estado mais sublime, uma forma excelente de se orientar, assim sabemos como se aliar aos mais fortes e usar os mais fracos. Também é a melhor forma de auto-conhecimento, pois é uma medida para conhecer os outros, e nos conhecer em relação a eles, e finalmente nos conhecer em relação a nós mesmos. Você, posso dizer, só estou conhecendo hoje; o que eu conhecia antes não era você de verdade, era um ídolo que eu mesmo criei e usei, e só me arrependo de não ter aprendido o suficiente com ele na época, por erro meu e idéias erradas. Se eu já fosse demônio desde então, seríamos muito mais próximos. Mas posso dizer que somos bastante, não se sinta desolado.
O anjo olhava-o com resistência, o orgulho por um fio, mas não tomou iniciativa de falar, e Semjaza acrescentou:
- Se precisar de um ídolo, eu estou disponível, até você se recuperar. Imagino que já podemos sair daqui e resolver isso.
Azazel abraçou o demônio, desatou-o das correntes e seguiu-o com passos caninos pelos corredores da catedral até o quarto de D. Rossini. Ao vê-los, o arcebispo praguejou mais alto que o coro cantando o Dies Irae do réquiem e berrou ordens para Azazel, mas o anjo, acolhido pela sombra de Semjaza, ignorou-o. Quanto a Semjaza, recolheu sua espada no canto do quarto e D. Rossini, pensando que seu fim chegara, não se moveu. Ele aguardava o golpe quando começou Lacrimosa, mas o demônio tinha seus termos para negociar.
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Semjaza escutou aquele réquiem outra vez um mês depois, no escritório de advocacia que era fachada do Sindicato da Ascensão, e pediu para diminuir o volume.
- Não gosta dessa música?- perguntou Vinçart.
- Barulhenta demais, com muita gritaria, e muito irregular- resmungou o demônio.
- Então procure escutar o de Dvorak, acho que combina mais com você.- Vinçart consultou o relógio.- Sikes está muito atrasado. Terá acontecido algo?
- Pouco provável. Azazel já provou sua eficiência e confiabilidade como guarda-costas.
- É o que parece, mas ainda acho que foi precipitada a sua idéia de fazer acordo com D. Rossini, o risco era muito grande e o resultado poderia ser desastroso.
- Mas eu não cometi nenhum erro, afinal de contas- disse Semjaza.- Não deixei nenhuma cláusula de que aquele sujeito pudesse se aproveitar, e não dei muita escolha a ele, além de sobreviver ou não.
- Você estava blefando- observou Vinçart.
- Estava, afinal não imaginei que ele valorizasse tanto assim a própria vida a ponto de negociá-la em troca da tutela de Azazel e da própria fortuna. Algumas vezes ainda julgo errado os humanos.
- O único juiz é o tempo, o resto são palpiteiros- disse Vinçart, enquanto o coro do réquiem sussurrava “quando judex est venturus”.- Não obstante, você fez um bom trabalho.
- Agora que D. Rossini fugiu para o exílio, a Igreja está fora do nosso caminho- disse Semjaza, indo até a janela.- Nossa próxima meta é o Estado, o leviatã onde desde os nossos tempos os demônios têm encontrado asilo e buscado a realização de seus valores.
Os metais do Tuba Mirum começaram a soar. Vinçart aumentou o volume, e Semjaza continuou a olhar pela janela fechada a tempestade lá fora.

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

A virada do Semjaza sobre o Azazel foi magnifica!

Da-lhe Semjaza! =D


Mas continua o gostinho de quero mais...

4:15 AM  
Anonymous Anônimo disse...

parou pq? Pq parou?

1:02 AM  

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