Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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Local: Belém, Pará, Brazil

terça-feira, janeiro 27, 2009

Preâmbulo

O profeta saiu de casa antes do amanhecer. Antes do amanhecer olhou para trás e de imediato censurou a si mesmo por isso. Eis que, tendo então de fato saído de casa, não mais tornou os olhos. Renegou lar e pátria, e não sentiu remorsos. Para sua casa, a madrugada; para sua estrada, o amanhecer. E saiu de casa antes do amanhecer, para seguir de encontro à alvorada sem sentir remorsos. Por isso o profeta não mais tornou os olhos para a madrugada e, farejando o vento das trilhas, encararia a aurora em breve.
Pensou consigo: “Se eu fosse um engenho de treva e bruma, caminharia com pés mais ligeiros, e passos mais sutis sobre relva e rocha sólida. No entanto sou eu relva e rocha sólida, caminhando com um engenho de treva e bruma, sem pés e sem deixar passos. O engenho da treva é ser ligeira; O engenho da bruma é não deixar passos; Nada quero com relva e rocha sólida, exceto ouvir-lhes os muitos sons; Pois treva e bruma são criaturas mudas, enquanto relva e rocha sólida são surdas. E cego é o caminho que vê, porém não fala e nem escuta. Caso se abstenha voluntariamente, eis que é uma criatura destituída de tato. O olfato insuficiente não fareja o vento; O paladar insuficiente não prova do sabor da aurora. Treva e bruma, relva e rocha sólida, vento e aurora. Aquele que tiver todos os sentidos apurados para receber, há de caminhar com pés mais ligeiros e sem deixar passos. É esse o engenho da caminhada.”
O profeta reduziu a velocidade dos próprios passos. Não tinha pressa, conquanto soubesse que a estrada é longa. Tinha consciência de que haveria de se cansar, fosse em hora precoce ou tardia. E estava sozinho. Ninguém sequer lhe dissera “Deus te acompanhe”, e mesmo que o houvessem feito, sabia que nem deuses nem terrenos lhe fariam companhia antes da alvorada. Caminhava sozinho, antes do sol, antes da estrada. Deuses e terrenos ainda estavam para ser encontrados mais adiante. No momento apenas treva, bruma, relva e rocha sólida, elementos que lhe indicariam o caminho. Ainda nem chegara ao ponto de considerar a si mesmo peregrino em terra estranha; E nem receava se perder, porque de fato não tencionava se localizar-- A quem não tem rumo, o vento sopra favorável em qualquer uma das direções. Eis que o profeta seguia farejando a brisa e indo de encontro ao sol que nasceria em breve, sem prova alguma de fazer isso no leste. A madrugada tem suas estrelas, mas elas não conhecem o rumo dos viajantes. O dia trará o ciclo do sol independentemente dos pontos cardeais. Os astros indicam, mas não impulsionam; Iluminam para espelhar algo que tentam enxergar. O profeta não queria trazer luz apenas à própria sala.
Não sentia o profeta fome ou sede, embora nada tivesse provado antes de sair de casa; e sabia que não estava para encontrar alimentos ou água em horas primeiras. Não havia quem lhe desse o pão-- E nunca houvera mesmo, pois o profeta não aceitava receber a parte de quem não sabia dividir; Aceitava de quem soubesse multiplicar, e aceitava esmolas apenas de quem se mostrasse mais pobre que ele próprio. Saíra de casa decidido a aceitar cada vez com mais restrição.
Pressentia o sol. A aurora não tardava, e o profeta estava convicto de possuir olhos para enxergá-la-- Pois antes de iluminar é preciso ver, como antes de falar é preciso ouvir. E o profeta deixaria um mistério, assim como o sol poente anterior deixara, e todos os de outrora... E as vastas noites não eram descanso. Se havia algum, era aquele provocado pela sensação de afastamento, distância. Permanecer de pé, mas parado, era cansativo; permanecer sentado era cansativo; deitar-se de costas e observar o céu obscuro era cansativo-- apenas os passos mais largos eram restauradores, confortavam e davam abrigo. Tinham mais valor que os passos ásperos, demorados, pomposos e os quais erroneamente pensavam conduzir adiante. Antes mesmo de amanhecer, largo e ligeiro era o passo do profeta.
O cheiro ao redor lembrava-lhe aquele de laudas antigas-- A erudição não tem cheiro de papel, e ele sabia disso. Ora, então era muito bom sentir insigne cheiro ainda tão no início da jornada. O futuro poderia mudar isso, porém alterando apenas o presente vindouro-- O passado entrara na Eternidade, tornara-se indestrutível. Onde o profeta pisara, pisara; e não mais havia meios de alguém desmarcar ou anular esses passos, mesmo que tenham eles sido impressos em terra anteriormente ao sol nascer, pois é um ato que não precisa de testemunhas, sob luz ou sombra, em horas últimas ou primeiras. O profeta não queria que lhe fosse dada a capacidade, se é que tal havia, de reverter ou alterar os passos dados, pois enxergava mais facilmente a mão do desígnio naquilo que era irreversível.
Aguardando, o profeta sabia que sua aurora não seria a dos outros, tampouco a de todos. Apresentar-se-lhe-iam novas forças, independentemente da vontade alheia e dos esforços de seus futuros e inevitáveis adversários-- E ele fazia questão de contar com mais opositores que aliados em quantidade. Mesmo a solidão parecia mais valiosa, sabendo que em algum outro ponto do espaço e do tempo havia oponentes e aliados, pois a solidão mais absoluta deixava de ser desterro para tornar-se onipresença. O amanhecer não era solitário, pois seus companheiros eram os iluminados, porém não era onipresente, pois não chegava até os confins do universo sendo a mesma combinação. Assim sendo, todos poderiam procurar por suas próprias auroras, de qualquer sol-- E sempre haveria um dia seguinte para encontrar a iluminação.
O profeta percebeu a mudança na coloração do céu, dos horizontes, especialmente adiante, onde uma faixa azulada, mais clara que a grande região umbrosa, começava a se expandir. Não era um anúncio. O profeta estava acostumado a escutar o canto dos pássaros, mas naquele momento esse som canoro não tocava aquele campo e aquela trilha, pois ali não mais havia pássaros ou criaturas terrestres-- apenas o engenho de treva e bruma, cantando para o iniciado e animando-lhe o empenho. O próprio amanhecer era uma triste canção de nostalgia penetrando por entre as altas árvores, chegando em toda parte. O profeta, considerando que havia poucas árvores às margens da trilha-- a densidade da floresta era mais adiante--, poderia olhar para cima e enxergar nada mais que a imensidão sem molduras. Não queria um céu sem nuvens, e o que tinha eram nuvens finas, pouco visíveis ainda na penumbra e não conseguindo velar estrelas. O sol era o que vinha para velar muitos astros.