Sociedade das Almas Perdidas

Ultimamente não se vê por aí seres humanos; o que encontramos nas vastas terras são os profanos, habitantes das alturas de ferro, e fantoches, trancados nos quartos escuros por trás das cortinas que não querem remover. O que resta, então, são os hereges, as almas perdidas, rondando nos exterior das torres, em derredor do imenso campo enevoado. Onde estão as fronteiras? Onde está o limite? Quando se chega ao além, ao incognoscível?

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Local: Belém, Pará, Brazil

quarta-feira, novembro 26, 2008

A Criatura Suprema

Naquele horário demoraria bastante até passar um ônibus que levasse Céli daquele longínquo bairro de volta para casa, em um bairro mais longínquo ainda ao outro lado da cidade, e ele queria dormir o quanto antes, por isso subiu na primeira laje que achou conveniente e se acomodou ali. Era a laje de um prédio em cujo primeiro andar funcionava uma padaria, e no segundo a presumível residência do padeiro; mas o prédio todo estava então fechado e com as luzes apagadas. De fato, quase não havia iluminação e movimentação na rua inteira: alguns postes acesos na calçada do outro lado e pouquíssimas casas iluminadas eram mais tênues que as densas nuvens avermelhadas retendo outras luzes da cidade.

Céli deitou-se na laje empoeirada, primeiro estirado, mas depois encolheu-se um pouco contra a fachada do prédio, pois soprava um constante vento frio prenunciando chuva. Céli olhou para a calha mais acima e supôs que não se molharia tanto se a chuva não viesse muito forte. Embora ele não gostasse nada de frio, tirou a camisa para deitar-se sobre ela quando concluiu que ficar com a cabeça nas pedras era pior que ficar com pouca roupa no vento frio, e encolheu-se mais. Apesar disso, ele não demorou nada para dormir após ignorar por completo os sinais de chuva, a superfície áspera da laje e até a possibilidade de mexer-se durante o sono e cair dali.

Mas em seu sonho também havia sinais de chuva. Acontece que o evento onírico não se passava mais em uma rua abandonada pelo poder público, e sim em uma ampla floresta, durante o que parecia uma serena manhã. Havia árvores espantosamente altas e muitas folhas no chão, e feixes de luz passavam pelas ramificações e pela neblina. Ainda estava frio, mas era agradável e acolhedor, e tanto melhor ficou quando veio a cair a chuva fina, cujo som nas folhas de relva era suave e onipresente.

O lugar era pressentido como infinito, mas Céli chegou a um rio sem outra margem. O semi-humano pensou em atirar-se na água, mas em vez disso pôs-se a escalar uma árvore. Teve muito trabalho até alcançar um dos galhos mais baixos e firmar-se nele, após o que seguiu passando para os mais altos. Ele não conseguia enxergar quanto ainda faltava subir para chegar a céu aberto, e conquanto subisse sempre havia mais ramificações a percorrer, além de que mais pálida ficava a luz do sol, mais forte se tornava a chuva nas alturas e mais impelido Céli se sentia. Em meio à chuva ele estava transpirando e não sentia frio. De certo momento em diante, ele perseguia implacavelmente uma forma luminosa indefinível através das ramas.

A chuva era então tempestade, e a luz do sol era opaca e bruxuleante. Céli ia com agilidade no encalço da figura luminosa, absorto e quase eufórico aproximando-se de sua presa, as garras à mostra e os dentes brilhando. Em certa altura a presa parou e virou-se como acuada, embora não estivesse.

- Eu desisto - falou a figura quando Céli postou-se diante dela.

- Render-se não adianta nada - respondeu o semi-humano. Estava mais relaxado, mas ainda respirando depressa e encarando sua preza com avidez. - Resistir também não, mas eu deixo que tente.

Ele saltou sobre a figura e ambos lutaram, acabando por cair do alto das árvores. Céli nadou e chegou até a suposta outra margem inexistente do rio. Saiu exausto da água e ficou deitado à margem, sob a chuva outra vez fina. Mais tarde ele se levantou com algum esforço e olhou ao redor. Ali era um campo, não mais floresta, mas o ambiente não demonstrava mudança.

Em breve a figura também emergiu, e rastejou até Céli. Tinha perdido a luminosidade e parecia um vestígio; por outro lado, demonstrava alguma potência que não tinha em sua forma anterior. Céli olhou com extática frieza para o ser a seus pés e, sob a chuva, voltou-se para as alturas:

- Os deuses me reconhecem como a criatura suprema do céu e da terra. Vamos, portanto, agora que temos coisas a fazer.

Ele despertou preguiçosamente, sacudiu os cabelos molhados e ficou alguns minutos sentado na laje empoçada, observando o movimento da rua e remoendo o que ainda conseguia lembrar sobre o sonho. A posição do sol indicava que já era quase meio dia, mas continuava chovendo e estava tão nublado que parecia ainda o início da manhã.

Finalmente Céli contou algumas moedas que tinha em um dos bolsos. Eram poucas, mas bastavam para um desjejum regular, por enquanto; o semi-humano resmungou consigo por causa da pequena quantia, porém aquilo era melhor que nada, de qualquer modo. Ele desceu da laje, torceu a camisa molhada, vestiu-a e entrou na padaria com ar de tédio, como quem estivesse farto de andar na rua em dias chuvosos e sombrios.

3 Comentários:

Blogger Emy disse...

ahhhhhhh, o miau!!!!

adorei...simpático!!!

2:25 AM  
Anonymous Anônimo disse...

texto Sphynx, não sabia que você escrevia tão bem, fala pouco quando se trata de chats

AHOIQHIOEHQOIWHEOHWE
*-*
Mas adorei.

Beijos

2:05 AM  
Blogger Tiago disse...

Sempre ouvindo falar do Felino, mas nunca o vendo em ação. Muito, muito, muito bom, Ikeda.

Deu até vontade de escrever algo...

12:45 AM  

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